Em 2008, o mundo assistiu ao aprofundamento de uma crise econômica que fez ruir vários dos paradigmas vigentes, até então impassíveis de discussão, que vangloriavam um suposto funcionamento eternamente harmônico do mercado e seus agentes. Com as quebras e falências monumentais, governos passaram imediatamente a buscar soluções, ou atenuantes, rápidas para o colapso e os ideólogos do modelo fracassado não se enrubesceram por virar a casaca e defender a mão firme e reguladora do Estado.
Os especialistas que em suas análises levam em conta o ponto de vista do trabalhador alertaram prontamente para que a fatura do crash econômico acabaria, como já historicamente comprovado, sendo repassada à população comum, aquela que não aplica seus ganhos no mercado financeiro e nem especula com o crédito ou a oferta de alimentos. A mão do Estado acabaria, inelutavelmente, por mergulhar no bolso dos cidadãos, para dar conta das implosões que o setor privado causou nos mais diversos, e essenciais, segmentos.
Dentro dessa lógica, a solução que passou a ser adotada em cadeia foi a de demitir funcionários das empresas que acumularam os maiores prejuízos com o estouro da bolha financeira. O corte massivo de vagas foi, no entanto, desnecessário e até mesmo acintoso, uma vez que as empresas que o adotaram foram, em grande parte, aquelas que mais se locupletaram com a prosperidade econômica – algo reconhecido até mesmo pelos analistas mais conservadores.
A profundidade da crise aliada à insistência em se passar os ônus ao trabalhador, sempre na tentativa de ressuscitar a mesma lógica sistêmica, pode, entretanto, oferecer um coquetel reabilitador às classes populares. Como visto, manifestações massivas contra a crise e o próprio capitalismo ocorreram por todos os cantos do globo. Londres (em plena reunião do G-20), Atenas, Lisboa, Paris e muitos outros locais já testemunharam calorosas ondas de insatisfação popular.
"Vivemos algo parecido ao início do século 20. Nessa época, fazendo um paralelo geofísico, as placas tectônicas se movimentaram. Tivemos revoluções, o nascimento e morte do chamado bloco soviético, enfim, uma reorganização muito grande do mundo. Agora, começamos o século 21 com as placas também nervosas, se mexendo. Temos uma temperatura social que coloca, em nível mundial, as forças do trabalho em oposição às do capital", afirmou o sociólogo Ricardo Antunes em recente entrevista ao Correio.
Neste contexto, encaixam-se também as lutas de trabalhadores brasileiros, fortemente golpeados pela crise. Ainda que seus efeitos não tenham sido tão devastadores por aqui, milhares de postos de trabalho foram cortados, além de terem sido anunciadas possíveis dificuldades em se honrarem os acordos com o funcionalismo público.
O governo federal, ao mesmo tempo em que prepara diversas medidas com vistas a melhorar a qualidade e eficiência do serviço público, faz, contraditoriamente, vários cortes de orçamento. "O governo anunciou no ano passado a abertura de 1000 novas agências do INSS e novos concursos. Porém, realizou cortes no orçamento e mesmo assim quer manter o cronograma", diz Junia Gouveia, do comando da greve dos servidores do INSS, marcada em caráter nacional para o dia 16 de junho.
Em defesa dos direitosOs servidores públicos vêm passando já há alguns anos por seguidas tentativas de fragilização de direitos conquistados ao longo de décadas de lutas populares. Com a atual crise, figuras simbólicas do patronato, como Roger Agnelli, Paulo Skaff e Benjamin Steinbruch, defenderam tais medidas como necessárias e inescapáveis, aviso mais que suficiente para que se compreendesse que elas seriam de fato perpetradas.
No caso específico do servidor da previdência, a greve foi apontada como a forma de impedir que o governo pratique arrocho sobre os salários, com o aumento da jornada e a imposição da produtividade, através da variação da GDASS, a gratificação a que têm direito os funcionários. Tal mudança refletiria o ‘caráter produtivista’ da política governamental. A bonança, que antes equivalia a cerca de 15% do rendimento do trabalhador, pode ficar na casa dos 50%, o que atrelaria completamente o salário do servidor ao alcance de metas.
"O que queremos são boas condições para fazer o atendimento, manutenção da jornada de 30 horas sem redução salarial e reestruturação das carreiras", diz a dirigente. "Assim como em relação aos bancários, a OMS recomenda que a jornada no serviço público, que inclusive tem mais atribuições, seja de no máximo 30 horas semanais", completa.
De acordo com a dirigente, as atuais diretrizes de funcionamento da máquina pública atentam até contra seus próprios princípios, referenciados na qualidade, e não na quantidade. "Há um conceito de resolutividade no serviço público, que é o de concentrar esforços na solução dos problemas do público, e não somente atingir metas numéricas, como quer o governo. Não adianta fazer 50 atendimentos e não resolver nenhum problema trazido pelo indivíduo", assinala Junia.
A tentativa governamental de aumento da jornada vem se dando através de pressão nos locais de trabalho, especialmente para a assinatura do termo de opção no qual o servidor escolhe entre manter a jornada de 30 horas e reduzir seu salário ou fazer 40 horas para que o vencimento siga igual. Com isso, como já alertado neste Correio em
matéria sobre a ANVISA, Agência Nacional de Vigilância Sanitária, o governo economiza um alto quinhão ao não realizar novas contratações.
"É tudo uma questão de prioridade. O governo não deu R$ 300 bilhões, até mais, aos bancos? Não fez um empréstimo de R$ 4,5 bilhões ao FMI? Fora isso, os encargos da dívida pública consumiram R$ 233 bilhões no ano passado. Sendo assim, não se pode alegar falta de dinheiro, trata-se apenas da prioridade do governo", aponta Washington Lima, economista que trabalha para o Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal (Sintrajud) – o governo federal anunciou mais R$ 10 bilhões de empréstimo ao FMI após a entrevista.
"É por isso que queremos também realizar um abaixo-assinado com grande adesão popular para a abertura de uma CPI da previdência. Inventaram a DRU (Desvinculação de Receitas da União) para desviar recursos constitucionalmente dirigidos à previdência e agora queremos saber onde foi parar esse dinheiro todo, queremos entender por que a previdência não tem dinheiro", questiona Junia.
Para a professora da UFRJ Denise Gentil, autora de tese de mestrado que desconstrói o que ela considera ‘falsa crise na previdência’, a política de cortes de investimento no setor público acompanha as transformações sócio-econômicas vividas nas últimas décadas. "A idéia de falência dos sistemas previdenciários públicos e os ataques às instituições do welfare state (Estado de bem-estar social) tornaram-se dominantes em meados dos anos 1970 e foram reforçadas com a crise econômica dos anos 1980. O pensamento liberal-conservador ganhou terreno no meio político e no meio acadêmico", constatou, em entrevista ao veículo interno de sua Universidade.
Através de um forte discurso midiático, o governo passa ao público a idéia de que toma atitudes que visam melhorar a prestação de serviço (como a medida que obrigava o atendimento em no máximo 30 minutos), e que só depende do servidor realizá-las de modo satisfatório. Omite que as condições de trabalho são cada vez mais precárias, que o índice de adoecimento de trabalhadores cresce exponencialmente e que a falta de novos funcionários, que se deve à inexistência de concursos, é clara em algumas agências.
"Faz tempo que muito se reclama sobre a falta de investimento em saúde previdenciária e assistência social. Ao ignorar isso, o governo também reforça suas políticas de privatização nas respectivas áreas, desprestigiando o que é público. Com uma CPI poderíamos saber por que o governo não investiu nessas áreas", diz Junia.
Desvios de ‘conduta’"Para dizer que não tem dinheiro, o governo anuncia prejuízo do Banco Central, esse ano previsto para R$ 24 bilhões. Mas isso porque deixa títulos na bolsa de Nova York e assume o prejuízo dos bancos. Porém, a arrecadação também segue ótima, no último mês foi de 57 bilhões de reais. O total da folha dos servidores é da ordem de 168 bilhões/ano, portanto, pode-se dizer tranquilamente que o governo pode realizar novos concursos, contratações, além de cumprir com os reajustes", assinala Washington.
Com uma Constituição ainda jovial, por vezes fica fácil esquecer o peso social carregado pela previdência, assim como dos (sólidos) fundamentos de seu financiamento. "Defendo a idéia de que o cálculo do déficit previdenciário não está correto, porque não se baseia nos preceitos da Constituição Federal de 1988, que estabelece o arcabouço jurídico do sistema de Seguridade Social", argumenta Denise.
Em sua tese, assim como nas entrevistas que concede, Denise esclarece prontamente a razão que torna as contas equivocadas. "O cálculo leva em consideração apenas a receita de contribuição ao INSS que incide sobre a folha de pagamento, diminuindo dessa receita o valor dos benefícios pagos aos trabalhadores. O resultado dá em déficit. Essa, no entanto, é uma equação simplificadora. Há outras fontes de receita não computadas, como a COFINS, a CSLL e a receita de loterias. Isso está expressamente garantido no artigo 195 da Constituição e acintosamente não é levado em consideração", explica.
"Fiz um levantamento da situação financeira do período 1990-2006. De acordo com o fluxo de caixa do INSS, há superávit operacional ao longo de vários anos. Em 2006, para citar o ano mais recente avaliado, esse superávit foi de R$ 1,2 bilhão", conta a professora. Além da incorreção no cálculo do suposto déficit previdenciário, ainda há que se lidar com a famosa DRU, que, a partir da lógica fiscalista do governo, transfere recursos da seguridade para que se garanta o cumprimento do superávit fiscal (receitas menos despesas, exceto juros). "Em 2006, o excedente de recursos do orçamento da Seguridade foi de R$ 72,2 bilhões. Cerca de R$ 38 bilhões foram desvinculados da Seguridade para além do limite de 20% permitido pela DRU (Desvinculação das Receitas da União). Há um grande excedente de recursos no orçamento da Seguridade Social que é desviado para outros gastos".
Além de ressaltar a farsa contábil constituída pelo ‘déficit’ da previdência, no mínimo um erro de interpretação dos dispositivos constitucionais, Gentil acrescenta que, "ainda que tal déficit existisse, a sociedade, através do Estado, decidiu amparar as pessoas na velhice, no desemprego, na doença, na invalidez por acidente de trabalho, na maternidade. São direitos conferidos aos cidadãos de uma sociedade mais evoluída, que entendeu que o mercado excluirá a todos nessas circunstâncias".
Capital em detrimento do trabalhoConforme apontam alguns economistas, a opção clara do governo em atender às prioridades dos setores dominantes pode acabar se tornando contraproducente, de modo a tornar demasiadamente lento e sacrificante o processo de superação da crise.
"O governo deu dinheiro aos bancos para incentivar o crédito, mas eles preferiram comprar títulos públicos e com isso o crédito estagnou. Se quer reaquecer a economia, o governo deveria investir nos salários, aumentar o rendimento das pessoas, pois o trabalhador comum faz esse dinheiro circular na economia, ao invés de guardar em aplicações. Ao promover arrocho, o governo deteriora a crise", analisa Washington.
Ademais, o discurso que apregoa ao público que a seguridade social configura despesa traz embutido o velho argumento fiscalista, que escamoteia a realidade e inverte prioridades. "O que acontece é que existe um grande interesse na previdência por parte de fundos de pensão, seguradoras. Por isso devemos nos unir na luta com diversos movimentos sociais, pois há hoje uma potencial e ampla, além de sutil, política de privatizações, e que atinge todas as áreas de interesse da população", situa a dirigente Junia.
A compreensão da dimensão da débâcle econômica sobre a vida dos setores populares é exatamente o combustível que pode fortalecer a resistência às políticas que nada mais fazem a não ser socializar perdas. É pelo inconformismo em ter de lutar tanto, e não para aumentar, mas apenas para manter direitos, que os servidores voltam a unir forças em torno de uma paralisação nacional.
"Vemos no dia-a-dia das agências que a população apóia e se solidariza com a greve. Claro que é fácil entrevistar um ou dois cidadãos insatisfeitos na fila e criar factóide. Mas depois do refluxo do movimento de massas, vivemos um ano que já é diferente, com mais efervescência nos movimentos sindical e popular. Porém, devemos nos atentar para que, às mobilizações, deve se somar um projeto, para que tenhamos para onde caminhar, o que fez falta, por exemplo, na Argentina em 2001", finaliza Junia Gouveia.
Gabriel Brito é jornalista.