15 de dezembro de 2011

Há um velho romance latino-americano de língua hispânica, destes belos clássicos, premiados nobeis, que nos ensinam muito sobre a formação de povos, sobre muito que somos. Os anos de chuva que apagavam as memórias dos habitantes de Macondo, torna-se o romance em uma bela obra antropológica. Pois, o que seriamos sem nossas memórias, sem nossos laços de afetividades? Uma obra do homem em busca da libertação, da sua libertação, da libertação de seu povo, porém que vive ‘Cem Anos de Solidão’. O choro da criança no ventre de Úrsula, assim como o meu ainda dentre o corpo de minha mãe, poderia (no romance) ser sinal de ventriloquia, faculdades adivinhatórias, ou rabo de porco, atribuído ao casamento entre parentes, o que choca é que este choro, ao final, se revela para Úrsula ser a impossibilidade de amar. A impossibilidade de seu filho de amar, depois de tantas guerras, tantas mulheres, tantos laços familiares. “Mas a lucidez da decrepitude permitiu-lhe ver, e assim repetiu muitas vezes, que o pranto das crianças [muito narrado] no ventre da mãe não é um anúncio de ventriloquia ou faculdade adivinhatória, e sim um sinal inequívoco de incapacidade para o amor”. Porém agora, depois de muito tempo de ter lido está bela obra de Gabriel García Márquez, um dos meus livros mais preferidos, compreendo que a leitura realizada pelo Nobel, pode não ser tão inequívoco assim, nem todas as crianças que choram nas entranhas de suas mães [estes raros, e mitológicos casos], muito antes de serem atirados para fora pelas forças do mundo, nem todos esses nascem predestinados à infertilidade para o amor. Aureliano Buendía, não sou eu, nem todos essas crianças mitológicas do choro antecipado, porém é um deles, minha predestinação é amar, amar, e amor, essa é minha luta. Dizia o comandante Che Guevara em resposta a uma jornalista que “o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor”, portanto sou um revolucionário, pois tenho muitos e tantos amores que passam entre a “justiça, a igualdade”, e que se entrelaçam por tantos outros amorosos e afetivos amores. Desta forma, busco não ser ridículo em afirma que sou revolucionário, e procuro a minha predestinação a fertilidade do amor.

Willian Conceição

10 de novembro de 2011

Perversidade e Autoritarismo: Governo Dilma Edita Portarias de Restrição e Desconstrução de Direitos Territoriais Indígenas e Quilombolas - Manifesto



Perversidade e Autoritarismo: Governo Dilma Edita Portarias de Restrição e Desconstrução de Direitos Territoriais Indígenas e Quilombolas

Nós, organizações Indígenas e indigenistas abaixo listadas vimos a público manifestar nossa perplexidade e indignação diante das medidas administrativas e políticas do governo da presidente Dilma Rousseff relativas aos povos indígenas, aos quilombolas e ao meio ambiente. Tais medidas restringem o alcance dos direitos constitucionais dos povos indígenas e das comunidades quilombolas; impõem limites à participação destas nas discussões, debates e decisões a serem tomadas sobre os programas e empreendimentos econômicos que afetam direta ou indiretamente suas comunidades, terras, culturas, história e as suas perspectivas de futuro; bem como, assegura celeridade e lucratividade exorbitante aos empreendimentos das grandes corporações econômicas, especialmente as empreiteiras.
Nesta perspectiva, o governo editou, no dia 28 de outubro de 2011, a Portaria Interministerial de número 419, assinada pelos ministros da Justiça, Meio Ambiente, Saúde e Cultura. A portaria visa regulamentar, de acordo com os interesses do governo, a atuação da Fundação Nacional do Índio (Funai), da Fundação Cultural Palmares (FCP), do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e do Ministério da Saúde quanto à elaboração de pareceres em processos de licenciamento ambiental de competência federal, a cargo do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
A Portaria 419/2011 foi criada, portanto, para facilitar a outorga (concessão) das licenças ambientais aos grandes projetos econômicos, especialmente de hidroelétricas, mineração, portos, hidrovias, rodovias e de expansão da agricultura, do monocultivo e da pecuária na Amazônia e no Centro-Oeste do país.
Em diversas ocasiões representantes do governo externaram publicamente contrariedade com a legislação ambiental vigente, alegando que ela dificulta a implementação de certos projetos e que paralisa os empreendimentos econômicos. No entender de quem governa o país, o respeito aos prazos estipulados pela legislação para a realização de estudos e análises dos EIA-Rima, bem como os procedimentos previstos para resguardar direitos de comunidades e povos indígenas e quilombolas torna demasiado lenta a concessão das anuências ou licenças que permitam a implementação dos projetos econômicos.
As recentes medidas anunciadas transformam a Funai, o Ibama e a FCP em meros “carimbadores” de atividades e projetos exploratórios. Apesar de apresentar um vasto conteúdo (32 páginas), acerca de princípios ambientais e preservacionistas, em sua essência, a Portaria 419/2011 pretende limitar os prazos para a manifestação dos órgãos responsáveis pelos estudos, análises, avaliação e posicionamento quanto à viabilidade ou não dos empreendimentos que afetam os povos indígenas, os quilombolas e as áreas de preservação ambiental.
No Capítulo II, Art. 5º da Portaria 419/2011, por exemplo, se estabelece que a participação dos órgãos e entidades envolvidos no licenciamento ambiental para a definição do conteúdo do TR (Termo de Referência), seguirão as seguintes normas: I - O Ibama encaminhará, em até 10 (dez) dias consecutivos, a partir do requerimento de licenciamento ambiental, a solicitação de manifestação dos órgãos e entidades envolvidos, disponibilizando a Ficha de Caracterização Ambiental em seu sítio eletrônico oficial; II - Os órgãos e entidades envolvidos deverão manifestar-se ao Ibama no prazo de 15 (quinze) dias consecutivos, contados do recebimento da solicitação de manifestação.
Nos parágrafos 1º e 2º deste artigo estabelece que: Em casos excepcionais, a pedido do órgão ou entidade envolvida, de forma devidamente justificada, o IBAMA poderá prorrogar em até 10 (dez) dias o prazo para a entrega da manifestação; Expirado o prazo estabelecido neste artigo, o Termo de Referência será considerado consolidado, dando-se prosseguimento ao procedimento de licenciamento ambiental.
Já o Art. 6º (incisos I, II, III, IV e V) deste mesmo Capítulo evidencia o que o governo espera da Funai, do Ibama e da FCP: Os órgãos e entidades envolvidos no licenciamento ambiental deverão apresentar ao IBAMA manifestação conclusiva sobre o Estudo Ambiental exigido para o licenciamento, nos prazos de até 90 (noventa) dias no caso de EIA/RIMA e de até 30 (trinta dias) nos demais casos, a contar da data do recebimento da solicitação, considerando: I - Fundação Nacional do Índio - Funai - Avaliação dos impactos provocados pela atividade ou empreendimento em terras indígenas, bem como apreciação da adequação das propostas de medidas de controle e de mitigação decorrentes desses impactos. II - Fundação Cultural Palmares - Avaliação dos impactos provocados pela atividade ou empreendimento em terra quilombola, bem como apreciação da adequação das propostas de medidas de controle e de mitigação decorrentes desses impactos. III - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN Avaliação acerca da existência de bens acautelados identificados na área de influência direta da atividade ou empreendimento, bem como apreciação da adequação das propostas apresentadas para o resgate. IV - Ministério da Saúde - Avaliação e recomendação acerca dos impactos sobre os fatores de risco para a ocorrência de casos de malária, no caso de atividade ou empreendimento localizado em áreas endêmicas de malária.
No parágrafo 3º deste artigo, o governo abre uma possibilidade de ampliação do prazo por mais 15 dias para que os órgãos ou entidades entreguem sua manifestação ao Ibama: Em casos excepcionais, devidamente justificados, o órgão ou entidade envolvida poderá requerer a prorrogação do prazo em até 15(quinze) dias para a entrega da manifestação ao Ibama. Já o parágrafo 4º é categórico ao afirmar que: a ausência de manifestação dos órgãos e entidades envolvidas, no prazo estabelecido, não implicará prejuízo ao andamento do processo de licenciamento ambiental, nem para a expedição da respectiva licença.
Observa-se, assim, que o governo almeja ver autorizados “a toque de caixa”, de maneira imediata e sem estudos mais aprofundados todos os empreendimentos econômicos planejados. Como se pode concluir, a Portaria limita o tempo de intervenção dos órgãos e lhes obriga a avalizar qualquer atividade ou empreendimento num prazo de 90 dias. Além disso, caso não consigam apresentar um parecer no tempo estabelecido, o empreendimento terá continuidade.
Além disso, o esclarecimento de dúvidas relativas aos impactos das atividades em terras indígenas e sobre o meio ambiente somente poderão ser solicitadas uma única vez aos empreendedores. Textualmente, o § 6º do Artigo supracitado, determina que os órgãos e entidades envolvidos poderão exigir uma única vez, mediante decisão motivada, esclarecimentos, detalhamento ou complementação de informações, com base no termo de referência específico, a serem entregues pelo empreendedor no prazo de até 60 (sessenta) dias no caso de EIA/RIMA e 20 (vinte) dias nos demais casos.
E, na mesma direção, o § 7º engessa os pareceres dos órgãos competentes, impondo que os eventuais óbices sejam apontados a fim de que medidas possam ser adotadas para a sua superação, mas nunca a paralisação definitiva da obra ou empreendimento, como se verifica no texto a seguir: A manifestação dos órgãos e entidades envolvidos deverá ser conclusiva, apontando a existência de eventuais óbices ao prosseguimento do processo de licenciamento e indicando as medidas ou condicionantes consideradas necessárias para superá-los.
Como se isso não fosse suficiente, no inciso 10, do art. 2º., é estabelecido que “para efeitos desta Portaria”, o governo considera terra indígena somente aquelas que tiveram seus limites estabelecidos por Portaria do Presidente da FUNAI. Ao fazer isso, a Portaria atenta contra o direito originário, violando o art. 231 da Constituição Brasileira, restringindo o conceito de terra indígena àquelas previamente identificadas pela Funai. Com isso, de uma canetada, são ignoradas pelo menos 346 Terras Indígenas que são reivindicadas pelos povos indígenas, mas que ainda não tiveram, por parte do Estado brasileiro, os procedimentos administrativos necessários para o seu reconhecimento. A Portaria significa, então, na prática, uma prévia autorização para que essas terras sejam invadidas por qualquer tipo de empreendimento, mesmo nos casos em que sobre elas vivam populações indígenas.
O Ministério Público Federal certamente fará uma análise jurídica da Portaria 419/2011 e não se omitirá em acionar o Poder Judiciário pedindo a sua imediata revogação, uma vez que os exíguos prazos estabelecidos para a realização dos estudos e elaboração dos pareceres acerca dos empreendimentos tornam humana e tecnicamente impossível opinar sobre os impactos que barragens, rodovias e ou de qualquer outra grande obra trarão para as populações e ao meio ambiente.
Somando-se a estas medidas, no dia 31 de outubro de 2011, o ministro da Justiça editou a Portaria nº. 2.498/2011, estabelecendo que a Funai convoque os entes federados (nos quais se localizem as terras indígenas ainda não demarcadas) a indicar técnicos para acompanhar os procedimentos demarcatórios.
Esta é outra determinação do Poder Executivo que fundamentalmente pretende frear as demarcações de terras em curso e as demandas por áreas que os povos indígenas e quilombolas exigem do Governo Federal. Ao avalizar que outros entes não legalmente constituídos para o trabalho de identificação e delimitação de terras participem dos procedimentos, o governo estabelece ingerências políticas e administrativas que servem para retardar ainda mais ou inviabilizar as demarcações.
Além disso, ao possibilitar a participação de estados e municípios em um procedimento de competência exclusiva da União, destinado a resguardar um direito originário dos povos indígenas (e, portanto, anterior à constituição do Estado nacional), o governo estabelece um perigoso precedente: o da negociação de interesses sobre terras que, desde um princípio constitucional, não são negociáveis mesmo que se situem nos limites de um município e de um estado específico.
É importante ressaltar também que no dia 25 de outubro último, o Senado Federal aprovou o PLC 01/2010, que regulamenta o Art. 23, incisos VI e VII, da Constituição Federal, no qual se estabelece a competência comum dos entes federativos na proteção do meio ambiente. O projeto deixa dúvidas acerca de quem deverá agir quando os empreendimentos causarem impactos às terras indígenas, e a proposta aprovada dá a entender que ficará a cargo de estados ou municípios a incumbência dessa fiscalização. Isso poderá acarretar sérios problemas nas regiões onde as autoridades estaduais e/ou municipais têm algum tipo de prevenção ou são contrárias aos direitos e interesses das comunidades indígenas ou quilombolas.
Ao mesmo tempo, são graves as denúncias de que representantes da própria Funai têm pressionado membros de Grupos de Trabalho a modificar Relatórios Circunstanciados de Identificação e Delimitação de Terras Indígenas no sentido de reduzir as áreas delimitadas como tradicionais de povos indígenas e vêm atuando para tentar convencer lideranças indígenas a aceitar essa redução, condicionando a publicação dos referidos relatórios à redução da área de acordo com a proposta feita pelos membros da Funai. Além disso, há situação inclusive em que o órgão indigenista tem defendido, em público e até mesmo em juízo, que uma determinada área reivindicada por povo indígena não seria tradicional, não reconhecendo pareceres antropológicos que afirmam o contrário e se negando a constituir Grupo de Trabalho nos termos do que estabelece o Decreto 1775/96, único instrumento legal vigente com legitimidade para afirmar se uma terra é ou não tradicional indígena. Com isso estamos diante de mais uma grande manobra revoltante, anti-democrática, autoritária e tutelar que atenta contra o Estado de Direito uma vez que o reconhecimento do direito dos povos indígenas sobre suas terras tradicionais passa a depender do que pensa, defende e decide politicamente esse ou aquele dirigente do órgão indigenista.
Não podemos deixar de mencionar o fato de que o governo federal, a pesar de todas as denúncias feitas nestes últimos anos, tem feito “vistas grossas” à invasão e devastação protagonizada por garimpeiros, madeireiros e latifundiários. Essa situação se repete em várias terras indígenas, especialmente na região norte, e coloca em risco a sobrevivência de muitos povos, especialmente aqueles que vivem em situação de isolamento, a exemplo do caso dos Awá Guajá, no estado do Maranhão, que estão sendo literalmente caçados no interior das terras indígenas Araribóia e Carú.
Entendemos que esse conjunto de decisões desencadeadas em âmbito federal não ocorre ao acaso. Está perfeitamente conectada aos interesses das grandes corporações econômicas e aos políticos que estão visceralmente ligados entre si e com o próprio Governo Federal.
O Estado brasileiro já vinha atuando como financiador dos grandes empreendimentos, com vultosos recursos financeiros subsidiados e com a concessão de estratos do patrimônio territorial, ambiental, hídrico e mineral. Com as recentes medidas, a presidenta da República afrouxa a legislação de proteção ao meio ambiente, aos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Assim, ela vem desempenhando, com sucesso, a função de gerente de negócios, beneficiando especuladores e predadores dos bens e riquezas públicas de nosso país.
Tudo isso explica o fato da presidenta Dilma ter se recusado veementemente a estabelecer diálogo com o movimento indígena brasileiro. Reiterados pedidos de audiência foram protocolados desde o início de seu governo, mas todos foram negados. Até mesmo a Comissão Nacional de Política Indigenista, única instância governamental onde os povos indígenas podem se manifestar sobre os rumos da política indigenista encontra-se com as atividades paralisadas desde junho deste ano, porque a presidenta se recusa a participar de uma reunião com os indígenas.
Por fim, exigimos do Governo Federal a manutenção dos acordos firmados no que se refere ao apoio à tramitação do Projeto de Lei que trata de um novo Estatuto dos Povos Indígenas e do Projeto de Lei do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), bem como a não aprovação do PL 1610/96 sobre mineração em terras indígenas, por entender que este tema já está incorporado ao Estatuto. Exigimos ainda a imediata revogação das medidas recentes e a retomada dos procedimentos demarcatórios, tanto das terras reivindicadas pelos povos indígenas, quanto pelos quilombolas. Que a defesa dos direitos humanos, da justiça social e ambiental, apregoada pela própria presidenta Dilma, se tornem realidade, em favor dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, e não apenas discurso para melhorar a imagem do Brasil junto a opinião pública nacional e internacional.

Brasília, DF, 09 de novembro de 2011.

Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme)
Articulação dos Povos Indígenas do Pantanal (ArpinPan)
Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ArpinSudeste)
Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ArpinSul)
Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (APIB)
Associação das Mulheres Indígena em Movimento – AMIM
Associação do Povo Indígena Aikewara da Aldeia Itahy - Hemusso`ogn
Associação do Povo Indígena Atikum da Aldeia Ororubá
Associação do Povo Indígena Krahô-Kanela – APINKK
Associação do Povo Myky – Waypjatápa Manãnukje´y
Associação dos Índios Tupinambá da Serra do Padeiro – AITSP
Associação dos Marubo da Comunidade São Sebastião – AMAS
Associação dos Povos Indígenas do Tumucumaque – APITU
Associação dos Povos Indígenas Tiriyós, Kaxuyana e Txikuyana – APITIKATXI
Associação dos Povos Indígenas Waiana e Apalia – APIWA
Associação dos Povos Indígenas Waijãpi do Triângulo do Amapará - APIWATA.
Associação Grupo de Trabalho Tupari - AGRUPA
Associação Indígena do Povo Aikewara da Aldeia Sororó
Associação Indígena do Povo Amanayé do Sarawa
Associação Indígena do Povo Asurini do Trocará
Associação Indígena do Povo Palikur – AIPA
Associação Indígena Jaepya Arãdu Kariwassu Guarany - Nova Jacundá - Pará
Associação Indígena Karipuna – AIKA
Associação Indígena Tapuio do Carretão – AITCA
Associação Indígena Te Mempapytarkate Akrãtikatêjê da Montanha
Associação Indígena Tembé de Santa Maria do Pará – AITESAMPA
Associação Iny Mahadu – Povo Karajá
Associação União das Aldeias Apinajé – PEMPXÃ
Associação Waijãpi Terra, Ambiente e Cultura – AWATAC
Aty Guassu – Mato Grosso do Sul
Comissão de Professores Indígenas de Pernambuco – COPIPE
Comissão Guarani Nhemongueta
Comunidade Guajajara da Aldeia Guajanaíra - Itupiranga - Pará
Conselho das Aldeias Wajãpi – APINA
Conselho de Articulação do Povo Guarani do Rio Grande do Sul – CAPG
Conselho de Articulação Indígena Kaingang – CAIK
Conselho de Lideranças e Instituições Pataxó de Coroa Vermelha – CONLIN
Conselho de Lideranças Indígenas do Oeste de Santa Catarina
Conselho dos Caciques dos Povos Indígenas do Oiapoque – CCPIO
Conselho Indígena de Roraima - CIR
Conselho Indígena Mura - CIM
Conselho Indigenista Missionário – Cimi
Coordenação das Associações Indígenas Baniwa e Curipaco - CABC
Coordenação das Associações Indígenas do Baixo Rio Negro - CAIBRN
Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão - COAPIMA
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB)
Coordenação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro e Rio Xié - CAIARNX
Coordenação das Organizações Indígenas do Distrito do Iauarete - COIDI
Coordenação das Organizações Indígenas rio Tiquié, Uaupés e Afluentes - COITUA
Estudantes Indígenas do Curso Técnico em Agroecologia dos Povos Indígenas da região Sudeste Maraense - Campus Rural de Marabá;
Federação as Organizações Indígenas do Rio Negro - FOIRN
Federação das organizações e comunidades Indígenas do Rio Purus - FORCIMP
Federação Indígena das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia - FINPAT
Grupo de Apoio aos Povos Indígenas - GAPIN
Instituto Indígena Maiwu de Estudos e Pesquisas de Mato Grosso – MAIWU
Instituto Raoni
Instituto Teribre – Povo Karajá
Organização da aldeia Paygap Povo Arara - KAROPAYGAP
Organização das Mulheres Indígenas de Rondônia, Amazônas e Mato Grosso - OMIRAM
Organização das Mulheres Indígenas do Médio Purus - AMIMP
Organização dos Povos Indígenas Apurinã e Jamamadi de Paiuni – OPIAJ
Organização dos Povos Indígenas Casupá e Salamãi – OPICS
Organização dos Povos Indígenas de Guajará Mirim - Organização Oro Wari
Organização dos Professores Indígenas de Mato Grosso – OPRIMT
Organização Indígena da Aldeia Kumarumã – OINAK
Organização Pandereéhj - Entidade que representa os povos indígenas da terra Indígena Igarapé Lourdes e Terra Indígena Rio Branco
União das Organizações Indígenas do Vale do Javari – UNIVAJA

Fonte:http://www.koinonia.org.br/oq/noticias_detalhes.asp?cod_noticia=7274&tit=Not%EDcias

7 de novembro de 2011

Antropologia: Disparate e Oportunismo?

Bela Feldman-Bianco
Presidente da Associação Brasileira de Antropologia – ABA

Recentemente têm-se tornado freqüentes pronunciamentos inverídicos em detrimento do trabalho do antropólogo, especialmente em suas pesquisas voltadas para o reconhecimento dos territórios indígenas e quilombolas no Brasil. Segundo muitas vozes, pesquisas antropológicas poderiam levar a uma situação de insegurança jurídica no campo e nas cida-des, o que ameaçaria o direito à propriedade. A antropologia passa a ser falsamente acusada de fornecer um aval científico a uma realidade inexistente. Como a mais antiga das sociedades científicas na área de Ciências Humanas no Brasil – fundada em 1955 – a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) se vê obrigada a esclarecer o que há de enganoso nessas afirmações.

Em nome de uma pretensa insegurança jurídica, filtram-se as informações que de fato interessam ao público. Deve-se notar que desde 2003 foram instaurados no INCRA mais de mil processos para titulação de terras de quilombo. Destes, cerca de cem, em todo o Brasil, tiveram titulação expedida até hoje. Isso porque o processo para demarcação e titulação é altamente prudente, balizado por parâmetros técnicos e fortemente regulado por normas legais, como a Convenção 169 da OIT, o artigo 68 dos ADCT da Constituição Federal, o Decreto 4887/2003 da Presidência da República, a Instrução Normativa 57/2009 do INCRA, entre outros. O processo prevê a elaboração de um detalhado relatório antropológico que deve contemplar mais de trinta itens, incluindo fundamentação teórica e metodológica, histórico de ocupação das terras, análise documental com levantamento da situação fundiária e cadeia dominial, histórico regional e sua relação com a comunidade. Inclui, ainda, a identificação de modos de organização social e econômica que demonstrem ser imprescindível a demarcação das terras para a manutenção e reprodução social, física e cultural do grupo. Além disso, o processo prevê a contestação administrativa por parte de quem se sentir lesado, sem prejuízo de recursos judiciais cabíveis. Nesse cenário, falar em insegurança jurídica é disparate ou oportunismo.

Conceitos como os de identidade, cultura e grupo étnico têm uma longa trajetória dentro da antropologia como disciplina científica. Há mais de cinqüenta anos, pesquisadores reconhecidos no mundo todo têm afirmado que a identidade cultural não se herda pelo sangue, mas se constrói por modos de vida que são históricos, dinâmicos e complexos. No caso de nossa história recente, a categoria Quilombo é um bom exemplo disso. Criada no período colonial para denominar agrupamentos de escravos fugidos, em fins do século XX ela passa a significar outra realidade. O termo “remanescente de quilombo”, que designa uma pessoa jurídica para fins de atribuição de direitos territoriais, juntamente com os demais dispositivos legais que garantem aos diversos grupos formadores da sociedade nacional preservar os seus “modos de fazer, criar e viver” (CF, art.216), é usado na formação das associações comunitárias para reivindicar direitos de uma cidadania diferenciada ao Estado brasileiro. Não há disparate algum em reconhecer que tais grupos se auto-identifiquem hoje, legitimamente, como “quilombolas”, e recebam do Estado a acolhida prevista nas muitas normas jurídicas que regulam a lenta e complexa titulação de terras para esses grupos. Da mesma forma, não há oportunismo algum em se lançar mão de conceitos analíticos refinados em décadas de pesquisa científica no âmbito de estudos antropológicos que integram um procedimento administrativo altamente regulado por dispositivos legais.

Nesse sentido, os antropólogos, por meio da Associação Brasileira de Antropologia, têm desempenhado papel decisivo no reconhecimento dos direitos de tais grupos culturais, previstos na Constituição Federal, especialmente no caso de “indígenas” e “afro-brasileiros”, com a “valorização da diversidade étnica e regional” (artigos 215 e 216). As versões no mínimo equivocadas e especialmente mentirosas acerca da prática antropológica foram preparadas com a intenção pública de atacar a credibilidade do fazer antropológico. A falsificação delibe-rada tem sido historicamente utilizada como meio ilegítimo de obter a realização de objetivos políticos, mas, qualquer que seja a amplitude dessa trama, ela não pode encobrir a realidade social.

Por fim, reafirmamos o legado da antropologia: a diversidade cultural é a maior riqueza da Humanidade. Participar de pesquisas antropológicas no âmbito do reconhecimento de territórios indígenas e quilombolas nada mais é do que colocar em prática direitos assegu-rados pela Constituição Brasileira. É, pois, um dever de ofício e de cidadania a atuação para a concretização de direitos de grupos que possuem diferentes formas de organização social, cultural e econômica. O direito ao auto-reconhecimento não foi inventado pelos antropólogos. Está na Convenção 169 da OIT, norma reconhecida pelo Estado brasileiro e subscrita pelo Congresso Nacional desde 2002. A titulação de territórios quilombolas e indígenas não é uma ameaça; ao contrário, é passo fundamental para a efetivação de uma sociedade plural e verdadeiramente democrática.



FONTE: http://www.abant.org.br/news/show/id/160

27 de outubro de 2011

MÊS DA CONSCIÊNCIA NEGRA 2011- Florianópolis


PROGRAMAÇÃO

03/11
10h
Escolas da Rede Municipal de Ensino – Prof. Roberta Lima
Início do Projeto “Conhecendo e Reconhecendo Cruz e Sousa com a Música”

19h
Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina
Rua Doutor Jorge Luz Fontes, 310, Centro
Abertura das Atividades:
Mesa de Autoridades com a presença da Ministra Luiza Bairros
Homenagem póstuma a Vicente Francisco do Espírito Santo: “A Exceção e a Regra”

Vicente Francisco do Espírito Santo, militante negro, ativista da luta anti-racista e contra a intolerância religiosa, foi demitido da empresa estatal em que trabalhava, em março de 1992. Ao tomar conhecimento de que a razão de sua demissão estava na cor de sua pele, ajuizou uma ação. Em 1996, conseguiu uma vitória histórica. O Tribunal Superior do Trabalho determinou a reintegração de Vicente ao posto de trabalho. Seu caso teve repercussão nacional e é emblemático, por ser o primeiro caso em que os tribunais reconheceram a prática de racismo no local de trabalho, constituindo, assim, a exceção à regra.

07/11
19h
Auditório Stuart Wright – Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina
“Territorialidade Negra em Santa Catarina”
1º Painel: Territorialidade Negra Urbana em Florianópolis
Jailson de Souza e SilvaCoordenador Geral /Observatório de Favelas/RJ;
Cristiana TramonteProfessora e Pesquisadora da Cultura Afro-brasileira /
Núcleo Mover de Educação Intercultural e Movimentos Sociais / UFSC;
Mediadora: Alexandra Alencar – Doutoranda pesquisadora NUER / Arrasta-Ilha

2º Painel: Territorialidade Negra Rural em Santa Catarina
Raquel Mombelli /Doutora em Antropologia Social /NUER;
Vanda Pinedo /Movimento Negro Unificado/MNU;
Marcelo Spaolonse /INCRA
Mediador: Willian Conceição – Acadêmico de História da UDESC / Bolsista e pesquisador NUER/UFSC

09/11
9hs ao 12hs
Vila Aperecida
Oficina de Dança e Percussão Africana com o Senegalês Modou Diatta

19h
Auditório da Superintendência Regional do Trabalho
Rua Vitor Miereles, 198, Centro – 4º andar
Mesa Temática: “População Negra e Mercado de Trabalho – Relações de Desigualdades”
Rodrigo MinnotoSuperintendente Regional do Trabalho e Emprego de Santa Catarina;
Doutora Andrea Nice Silveira Lino Lopes – Procuradora do Trabalho e Coordenadora Nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho – COORDIGUALDE – Ministério Público do Trabalho;
João Nogueira – Sociólogo – Núcleo de Estudos Negro;
Daniel Teixeira – Advogado e Coordenador de Projetos - Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades/CEERT/SP;
Mediador: José Ribeiro – Coordenador de Relações Públicas da Central Única das Favelas/CUFA

10/11
9h às 12h
Monte Serrat
Oficina de Dança e Percussão Africana com o Senegalês Modou Diatta

13/11
14h
Sociedade Recreativa Novo Horizonte
Batizado da Bandeira e Escolha da Rainha do Grêmio Recreativo Cultural Escola de Samba Dascuia promovido Diretoria da Escola de Samba Dascuia

15/11
10h
Concentração no Terreiro de Umbanda Pena Verde
Rua Luiza Maria dos Santos, 32 , Rio Vermelho
Dia Nacional da Umbanda – Caminhada em defesa da Liberdade Religiosa

16h
Sociedade Recreativa Novo Horizonte
Homenagem à Umbanda e aos 60 anos da Almas e Angola em Santa Catarina - promovido pela Associação dos Terreiros de Umbanda Almas e Angola/ATUAA

16/11
19h
Palácio Cruz e Sousa
Praça XV de Novembro, 227, Centro – Florianópolis
Abertura do Seminário de Ensino das Relações Étnico-Raciais da Secretaria Municipal de Educação, Prefeitura de Florianópolis.

20h
Abertura do 1º Encontro Afro-Literário de Florianópolis – Instituto Enrea

17/11
8h às 17h
Auditório Senac
Rua Silva Jardim, 360, Prainha, Florianópolis
Seminário de Educação para as Relações Étnico-Raciais promovido pela Secretaria Municipal de Educação

19h
Auditório Stuart Wright – Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina
Mesa Temática: “Estatuto da Igualdade Racial e Ações Afirmativas”
Renato Teixeira/SEPPIR
Marcelo Tragtemberg – Comissão de Ações Afirmativas/UFSC;
Representante da Comissão Nacional de Promoção da Igualdade do Conselho Federal da OAB;
Egon Koerner Júnior – Procurador - Chefe do Ministério Público do Trabalho/SC;
Mediador: Edsoul – Presidente do Conselho Estadual das Populações Afro-descendentes/CEPA
Lançamento do Livro: “Ações Afirmativas: A Questão das Cotas” de Renato Teixeira

19/11
9h
Igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos
Rua Marechal Guilherme, no alto da Escadaria do Rosário, Centro
Culto Ecumênico

10h
Caminhada Zumbi dos Palmares

12h
Apresentação de Projetos Sociais
Africatarina, Abada Capoeira, Capoeira Ilha de Palmares, Mensageiros da Alegria, Mithos, Escola de Samba Mirim do Consulado, Arrasta Ilha, Dandara, Cedep Monte Cristo.

18h30
Teatro da UBRO
Performance Teatral: “Manifesto NEGA” – Coletivo NEGA

20/11
15h
Trapiche da Av. Beira Mar Norte
Lançamento da Campanha dos 16 dias de Ativismo Contra a Violência Doméstica

15h30
Lançamento do Livro: “Pingo de Chuva em A Cor da Amizade”

16h
Cultura de Rua
Família Arma-zen, Grupo Ideologia Comai Maf, Griôs, Movimento Negro Periférico/MNP, Dj Naomi/CUFA, Dj Leko/Ideologia, Ghetos.

18h
Show com Bandas Locais
Velha Guarda da Coloninha, Roberta Lira e Banda, Karine Cunha e Marcus Bonilla, Nenê Maravilha e Deto, Quatro Is, Velha Guarda da Protegidos da Princesa, Facina Samba, Novos Bambas, Velha Guarda da Copa Lord, Intuição, Sambarah.

24/11
10h
Praça XV de Novembro
Entrega da Coroa de Flores ao Busto de Cruz e Sousa – Gab. Ver. Márcio de Souza

19h
Palácio Cruz e Sousa
Solenidade de Homenagem aos 150º anos de nascimento de Cruz e Sousa

23h
Praça XV de Novembro
Serenata em homenagem ao Cruz e Sousa – Gab. Ver. Márcio de Souza

29/11
14h às 18h
Auditório da Fecomércio
Rua Felipe Shimidt, 785, Centro
Seminário: “Política de Saúde da População Negra”
para profissionais da Rede Municipal de Saúde e Comitê Municipal de Saúde da População Negra)

29 de setembro de 2011

Kabengele Munanga - Nosso racismo é um crime perfeito


Por Camila Souza Ramos e Glauco Faria [16.09.2011 17h45]

(A entrevista foi publicada na edição 77, de agosto de 2009)

O antropólogo fala sobre o mito da democracia racial brasileira, a polêmica com Demétrio Magnoli e o papel da mídia e da educação no combate ao preconceito no país.


Fórum - O senhor veio do antigo Zaire que, apesar de ter alguns pontos de contato com a cultura brasileira e a cultura do Congo, é um país bem diferente. O senhor sentiu, quando veio pra cá, a questão racial? Como foi essa mudança para o senhor?

Kabengele - Essas coisas não são tão abertas como a gente pensa. Cheguei aqui em 1975, diretamente para a USP, para fazer doutorado. Não se depara com o preconceito à primeira vista, logo que sai do aeroporto. Essas coisas vêm pouco a pouco, quando se começa a descobrir que você entra em alguns lugares e percebe que é único, que te olham e já sabem que não é daqui, que não é como “nossos negros”, é diferente. Poderia dizer que esse estranhamento é por ser estrangeiro, mas essa comparação na verdade é feita em relação aos negros da terra, que não entram em alguns lugares ou não entram de cabeça erguida.

Depois, com o tempo, na academia, fiz disciplinas em antropologia e alguns de meus professores eram especialistas na questão racial. Foi através da academia, da literatura, que comecei a descobrir que havia problemas no país. Uma das primeiras aulas que fiz foi em 1975, 1976, já era uma disciplina sobre a questão racial com meu orientador João Batista Borges Pereira. Depois, com o tempo, você vai entrar em algum lugar em que está sozinho e se pergunta: onde estão os outros? As pessoas olhavam mesmo, inclusive olhavam mais quando eu entrava com minha mulher e meus filhos. Porque é uma família inter-racial: a mulher branca, o homem negro, um filho negro e um filho mestiço. Em todos os lugares em que a gente entrava, era motivo de curiosidade. O pessoal tentava ser discreto, mas nem sempre escondia. Entrávamos em lugares onde geralmente os negros não entram.

A partir daí você começa a buscar uma explicação para saber o porquê e se aproxima da literatura e das aulas da universidade que falam da discriminação racial no Brasil, os trabalhos de Florestan Fernandes, do Otavio Ianni, do meu próprio orientador e de tantos outros que trabalharam com a questão. Mas o problema é que quando a pessoa é adulta sabe se defender, mas as crianças não. Tenho dois filhos que nasceram na Bélgica, dois no Congo e meu caçula é brasileiro. Quantas vezes, quando estavam sozinhos na rua, sem defesa, se depararam com a polícia?

Meus filhos estudaram em escola particular, Colégio Equipe, onde estudavam filhos de alguns colegas professores. Eu não ia buscá-los na escola, e quando saíam para tomar ônibus e voltar para casa com alguns colegas que eram brancos, eles eram os únicos a ser revistados. No entanto, a condição social era a mesma e estudavam no mesmo colégio. Por que só eles podiam ser suspeitos e revistados pela polícia? Essa situação eu não posso contar quantas vezes vi acontecer. Lembro que meu filho mais velho, que hoje é ator, quando comprou o primeiro carro dele, não sei quantas vezes ele foi parado pela polícia. Sempre apontando a arma para ele para mostrar o documento. Ele foi instruído para não discutir e dizer que os documentos estão no porta-luvas, senão podem pensar que ele vai sacar uma arma. Na realidade, era suspeito de ser ladrão do próprio carro que ele comprou com o trabalho dele. Meus filhos até hoje não saem de casa para atravessar a rua sem documento. São adultos e criaram esse hábito, porque até você provar que não é ladrão... A geografia do seu corpo não indica isso.

Então, essa coisa de pensar que a diferença é simplesmente social, é claro que o social acompanha, mas e a geografia do corpo? Isso aqui também vai junto com o social, não tem como separar as duas coisas. Fui com o tempo respondendo à questão, por meio da vivência, com o cotidiano e as coisas que aprendi na universidade, depoimentos de pessoas da população negra, e entendi que a democracia racial é um mito. Existe realmente um racismo no Brasil, diferenciado daquele praticado na África do Sul durante o regime do apartheid, diferente também do racismo praticado nos EUA, principalmente no Sul. Porque nosso racismo é, utilizando uma palavra bem conhecida, sutil. Ele é velado. Pelo fato de ser sutil e velado isso não quer dizer que faça menos vítimas do que aquele que é aberto. Faz vítimas de qualquer maneira.

Revista Fórum - Quando você tem um sistema como o sul-africano ou um sistema de restrição de direitos como houve nos EUA, o inimigo está claro. No caso brasileiro é mais difícil combatê-lo...

Kabengele - Claro, é mais difícil. Porque você não identifica seu opressor. Nos EUA era mais fácil porque começava pelas leis. A primeira reivindicação: o fim das leis racistas. Depois, se luta para implementar políticas públicas que busquem a promoção da igualdade racial. Aqui é mais difícil, porque não tinha lei nem pra discriminar, nem pra proteger. As leis pra proteger estão na nova Constituição que diz que o racismo é um crime inafiançável. Antes disso tinha a lei Afonso Arinos, de 1951. De acordo com essa lei, a prática do racismo não era um crime, era uma contravenção. A população negra e indígena viveu muito tempo sem leis nem para discriminar nem para proteger.

Revista Fórum - Aqui no Brasil há mais dificuldade com relação ao sistema de cotas justamente por conta do mito da democracia racial?

Kabengele - Tem segmentos da população a favor e contra. Começaria pelos que estão contra as cotas, que apelam para a própria Constituição, afirmando que perante a lei somos todos iguais. Então não devemos tratar os cidadãos brasileiros diferentemente, as cotas seriam uma inconstitucionalidade. Outro argumento contrário, que já foi demolido, é a ideia de que seria difícil distinguir os negros no Brasil para se beneficiar pelas cotas por causa da mestiçagem. O Brasil é um país de mestiçagem, muitos brasileiros têm sangue europeu, além de sangue indígena e africano, então seria difícil saber quem é afro-descendente que poderia ser beneficiado pela cota. Esse argumento não resistiu. Por quê? Num país onde existe discriminação antinegro, a própria discriminação é a prova de que é possível identificar os negros. Senão não teria discriminação.

Em comparação com outros países do mundo, o Brasil é um país que tem um índice de mestiçamento muito mais alto. Mas isso não pode impedir uma política, porque basta a autodeclaração. Basta um candidato declarar sua afro-descendência. Se tiver alguma dúvida, tem que averiguar. Nos casos-limite, o indivíduo se autodeclara afrodescendente. Às vezes, tem erros humanos, como o que aconteceu na UnB, de dois jovens mestiços, de mesmos pais, um entrou pelas cotas porque acharam que era mestiço, e o outro foi barrado porque acharam que era branco. Isso são erros humanos. Se tivessem certeza absoluta que era afro-descendente, não seria assim. Mas houve um recurso e ele entrou. Esses casos-limite existem, mas não é isso que vai impedir uma política pública que possa beneficiar uma grande parte da população brasileira.

Além do mais, o critério de cota no Brasil é diferente dos EUA. Nos EUA, começaram com um critério fixo e nato. Basta você nascer negro. No Brasil não. Se a gente analisar a história, com exceção da UnB, que tem suas razões, em todas as universidades brasileiras que entraram pelo critério das cotas, usaram o critério étnico-racial combinado com o critério econômico. O ponto de partida é a escola pública. Nos EUA não foi isso. Só que a imprensa não quer enxergar, todo mundo quer dizer que cota é simplesmente racial. Não é. Isso é mentira, tem que ver como funciona em todas as universidades. É necessário fazer um certo controle, senão não adianta aplicar as cotas. No entanto, se mantém a ideia de que, pelas pesquisas quantitativas, do IBGE, do Ipea, dos índices do Pnud, mostram que o abismo em matéria de educação entre negros e brancos é muito grande. Se a gente considerar isso então tem que ter uma política de mudança. É nesse sentido que se defende uma política de cotas.

O racismo é cotidiano na sociedade brasileira. As pessoas que estão contra cotas pensam como se o racismo não tivesse existido na sociedade, não estivesse criando vítimas. Se alguém comprovar que não tem mais racismo no Brasil, não devemos mais falar em cotas para negros. Deveríamos falar só de classes sociais. Mas como o racismo ainda existe, então não há como você tratar igualmente as pessoas que são vítimas de racismo e da questão econômica em relação àquelas que não sofrem esse tipo de preconceito. A própria pesquisa do IPEA mostra que se não mudar esse quadro, os negros vão levar muitos e muitos anos para chegar aonde estão os brancos em matéria de educação. Os que são contra cotas ainda dão o argumento de que qualquer política de diferença por parte do governo no Brasil seria uma política de reconhecimento das raças e isso seria um retrocesso, que teríamos conflitos, como os que aconteciam nos EUA.

Fórum - Que é o argumento do Demétrio Magnoli.

Kabengele - Isso é muito falso, porque já temos a experiência, alguns falam de mais de 70 universidades públicas, outros falam em 80. Já ouviu falar de conflitos raciais em algum lugar, linchamentos raciais? Não existe. É claro que houve manifestações numa universidade ou outra, umas pichações, "negro, volta pra senzala". Mas isso não se caracteriza como conflito racial. Isso é uma maneira de horrorizar a população, projetar conflitos que na realidade não vão existir.

Fórum - Agora o DEM entrou com uma ação no STF pedindo anulação das cotas. O que motiva um partido como o DEM, qual a conexão entre a ideologia de um partido ou um intelectual como o Magnoli e essa oposição ao sistema de cotas? Qual é a raiz dessa resistência?

Kabengele – Tenho a impressão que as posições ideológicas não são explícitas, são implícitas. A questão das cotas é uma questão política. Tem pessoas no Brasil que ainda acreditam que não há racismo no país. E o argumento desse deputado do DEM é esse, de que não há racismo no Brasil, que a questão é simplesmente socioeconômica. É um ponto de vista refutável, porque nós temos provas de que há racismo no Brasil no cotidiano. O que essas pessoas querem? Status quo. A ideia de que o Brasil vive muito bem, não há problema com ele, que o problema é só com os pobres, que não podemos introduzir as cotas porque seria introduzir uma discriminação contra os brancos e pobres. Mas eles ignoram que os brancos e pobres também são beneficiados pelas cotas, e eles negam esse argumento automaticamente, deixam isso de lado.

Fórum – Mas isso não é um cinismo de parte desses atores políticos, já que eles são contra o sistema de cotas, mas também são contra o Bolsa-Família ou qualquer tipo de política compensatória no campo socioeconômico?

Kabengele - É interessante, porque um país que tem problemas sociais do tamanho do Brasil deveria buscar caminhos de mudança, de transformação da sociedade. Cada vez que se toca nas políticas concretas de mudança, vem um discurso. Mas você não resolve os problemas sociais somente com a retórica. Quanto tempo se fala da qualidade da escola pública? Estou aqui no Brasil há 34 anos. Desde que cheguei aqui, a escola pública mudou em algum lugar? Não, mas o discurso continua. "Ah, é só mudar a escola pública." Os mesmos que dizem isso colocam os seus filhos na escola particular e sabem que a escola pública é ruim. Poderiam eles, como autoridades, dar melhor exemplo e colocar os filhos deles em escola pública e lutar pelas leis, bom salário para os educadores, laboratórios, segurança. Mas a coisa só fica no nível da retórica.

E tem esse argumento legalista, "porque a cota é uma inconstitucionalidade, porque não há racismo no Brasil". Há juristas que dizem que a igualdade da qual fala a Constituição é uma igualdade formal, mas tem a igualdade material. É essa igualdade material que é visada pelas políticas de ação afirmativa. Não basta dizer que somos todos iguais. Isso é importante, mas você tem que dar os meios e isso se faz com as políticas públicas. Muitos disseram que as cotas nas universidades iriam atingir a excelência universitária. Está comprovado que os alunos cotistas tiveram um rendimento igual ou superior aos outros. Então a excelência não foi prejudicada. Aliás, é curioso falar de mérito como se nosso vestibular fosse exemplo de democracia e de mérito. Mérito significa simplesmente que você coloca como ponto de partida as pessoas no mesmo nível.

Quando as pessoas não são iguais, não se pode colocar no ponto de partida para concorrer igualmente. É como você pegar uma pessoa com um fusquinha e outro com um Mercedes, colocar na mesma linha de partida e ver qual o carro mais veloz. O aluno que vem da escola pública, da periferia, de péssima qualidade, e o aluno que vem de escola particular de boa qualidade, partindo do mesmo ponto, é claro que os que vêm de uma boa escola vão ter uma nota superior. Se um aluno que vem de um Pueri Domus, Liceu Pasteur, tira nota 8, esse que vem da periferia e tirou nota 5 teve uma caminhada muito longa. Essa nota 5 pode ser mais significativa do que a nota 7 ou 8. Dando oportunidade ao aluno, ele não vai decepcionar.

Foi isso que aconteceu, deram oportunidade. As cotas são aplicadas desde 2003. Nestes sete anos, quantos jovens beneficiados pelas cotas terminaram o curso universitário e quantos anos o Brasil levaria para formar o tanto de negros sem cotas? Talvez 20 ou mais. Isso são coisas concretas para as quais as pessoas fecham os olhos. No artigo do professor Demétrio Magnoli, ele me critica, mas não leu nada. Nem uma linha de meus livros. Simplesmente pegou o livro da Eneida de Almeida dos Santos, Mulato, negro não-negro e branco não-branco que pediu para eu fazer uma introdução, e desta introdução de três páginas ele tirou algumas frases e, a partir dessas frases, me acusa de ser um charlatão acadêmico, de professar o racismo científico abandonado há mais de um século e fazer parte de um projeto de racialização oficial do Brasil. Nunca leu nada do que eu escrevi.

A autora do livro é mestiça, psiquiatra e estuda a dificuldade que os mestiços entre branco e negro têm pra construir a sua identidade. Fiz a introdução mostrando que eles têm essa dificuldade justamente por causa de serem negros não-negros e brancos não-brancos. Isso prejudica o processo, mas no plano político, jurídico, eles não podem ficar ambivalentes. Eles têm que optar por uma identidade, têm que aceitar sua negritude, e não rejeitá-la. Com isso ele acha que eu estou professando a supressão dos mestiços no Brasil e que isso faz parte do projeto de racialização do brasileiro. Não tinha nada para me acusar, soube que estou defendendo as cotas, tirou três frases e fez a acusação dele no jornal.

Fórum - O senhor toca na questão do imaginário da democracia racial, mas as pessoas são formadas para aceitarem esse mito...

Kabengele - O racismo é uma ideologia. A ideologia só pode ser reproduzida se as próprias vítimas aceitam, a introjetam, naturalizam essa ideologia. Além das próprias vítimas, outros cidadãos também, que discriminam e acham que são superiores aos outros, que têm direito de ocupar os melhores lugares na sociedade. Se não reunir essas duas condições, o racismo não pode ser reproduzido como ideologia, mas toda educação que nós recebemos é para poder reproduzi-la.

Há negros que introduziram isso, que alienaram sua humanidade, que acham que são mesmo inferiores e o branco tem todo o direito de ocupar os postos de comando. Como também tem os brancos que introjetaram isso e acham mesmo que são superiores por natureza. Mas para você lutar contra essa ideia não bastam as leis, que são repressivas, só vão punir. Tem que educar também. A educação é um instrumento muito importante de mudança de mentalidade e o brasileiro foi educado para não assumir seus preconceitos. O Florestan Fernandes dizia que um dos problemas dos brasileiros é o “preconceito de ter preconceito de ter preconceito”. O brasileiro nunca vai aceitar que é preconceituoso. Foi educado para não aceitar isso. Como se diz, na casa de enforcado não se fala de corda.

Quando você está diante do negro, dizem que tem que dizer que é moreno, porque se disser que é negro, ele vai se sentir ofendido. O que não quer dizer que ele não deve ser chamado de negro. Ele tem nome, tem identidade, mas quando se fala dele, pode dizer que é negro, não precisa branqueá-lo, torná-lo moreno. O brasileiro foi educado para se comportar assim, para não falar de corda na casa de enforcado. Quando você pega um brasileiro em flagrante de prática racista, ele não aceita, porque não foi educado para isso. Se fosse um americano, ele vai dizer: "Não vou alugar minha casa para um negro". No Brasil, vai dizer: "Olha, amigo, você chegou tarde, acabei de alugar". Porque a educação que o americano recebeu é pra assumir suas práticas racistas, pra ser uma coisa explícita.

Quando a Folha de S. Paulo fez aquela pesquisa de opinião em 1995, perguntaram para muitos brasileiros se existe racismo no Brasil. Mais de 80% disseram que sim. Perguntaram para as mesmas pessoas: "você já discriminou alguém?". A maioria disse que não. Significa que há racismo, mas sem racistas. Ele está no ar... Como você vai combater isso? Muitas vezes o brasileiro chega a dizer ao negro que reage: "você que é complexado, o problema está na sua cabeça". Ele rejeita a culpa e coloca na própria vítima. Já ouviu falar de crime perfeito? Nosso racismo é um crime perfeito, porque a própria vítima é que é responsável pelo seu racismo, quem comentou não tem nenhum problema.

Revista Fórum - O humorista Danilo Gentilli escreveu no Twitter uma piada a respeito do King Kong, comparando com um jogador de futebol que saía com loiras. Houve uma reação grande e a continuação dos argumentos dele para se justificar vai ao encontro disso que o senhor está falando. Ele dizia que racista era quem acusava ele, e citava a questão do orgulho negro como algo de quem é racista.

Kabengele - Faz parte desse imaginário. O que está por trás dessa ilustração de King Kong, que ele compara a um jogador de futebol que vai casar com uma loira, é a ideia de alguém que ascende na vida e vai procurar sua loira. Mas qual é o problema desse jogador de futebol? São pessoas vítimas do racismo que acham que agora ascenderam na vida e, para mostrar isso, têm que ter uma loira que era proibida quando eram pobres? Pode até ser uma explicação. Mas essa loira não é uma pessoa humana que pode dizer não ou sim e foi obrigada a ir com o King Kong por causa de dinheiro? Pode ser, quantos casamentos não são por dinheiro na nossa sociedade? A velha burguesia só se casa dentro da velha burguesia. Mas sempre tem pessoas que desobedecem as normas da sociedade.

Essas jovens brancas, loiras, também pulam a cerca de suas identidades pra casar com um negro jogador. Por que a corda só arrebenta do lado do jogador de futebol? No fundo, essas pessoas não querem que os negros casem com suas filhas. É uma forma de racismo. Estão praticando um preconceito que não respeita a vontade dessas mulheres nem essas pessoas que ascenderam na vida, numa sociedade onde o amor é algo sem fronteiras, e não teria tantos mestiços nessa sociedade. Com tudo o que aconteceu no campo de futebol com aquele jogador da Argentina que chamou o Grafite de macaco, com tudo o que acontece na Europa, esse humorista faz uma ilustração disso, ou é uma provocação ou quer reafirmar os preconceitos na nossa sociedade.

Fórum - É que no caso, o Danilo Gentili ainda justificou sua piada com um argumento muito simplório: "por que eu posso chamar um gordo de baleia e um negro de macaco", como se fosse a mesma coisa.

Kabengele - É interessante isso, porque tenho a impressão de que é um cara que não conhece a história e o orgulho negro tem uma história. São seres humanos que, pelo próprio processo de colonização, de escravidão, a essas pessoas foi negada sua humanidade. Para poder se recuperar, ele tem que assumir seu corpo como negro. Se olhar no espelho e se achar bonito ou se achar feio. É isso o orgulho negro. E faz parte do processo de se assumir como negro, assumir seu corpo que foi recusado. Se o humorista conhecesse isso, entenderia a história do orgulho negro. O branco não tem motivo para ter orgulho branco porque ele é vitorioso, está lá em cima. O outro que está lá em baixo que deve ter orgulho, que deve construir esse orgulho para poder se reerguer.

Fórum - O senhor tocou no caso do Grafite com o Desábato, e recentemente tivemos, no jogo da Libertadores entre Cruzeiro e Grêmio, o caso de um jogador que teria sido chamado de macaco por outro atleta. Em geral, as pessoas – jornalistas que comentaram, a diretoria gremista – argumentavam que no campo de futebol você pode falar qualquer coisa, e que se as pessoas fossem se importar com isso, não teria como ter jogo de futebol. Como você vê esse tipo de situação?

Kabengele - Isso é uma prova daquilo que falei, os brasileiros são educados para não assumir seus hábitos, seu racismo. Em outros países, não teria essa conversa de que no campo de futebol vale. O pessoal pune mesmo. Mas aqui, quando se trata do negro... Já ouviu caso contrário, de negro que chama branco de macaco? Quando aquele delegado prendeu o jogador argentino no caso do Grafite, todo mundo caiu em cima. Os técnicos, jornalistas, esportistas, todo mundo dizendo que é assim no futebol. Então a gente não pode educar o jogador de futebol, tudo é permitido? Quando há violência física, eles são punidos, mas isso aqui é uma violência também, uma violência simbólica. Por que a violência simbólica é aceita a violência física é punida?

Fórum - Como o senhor vê hoje a aplicação da lei que determina a obrigatoriedade do ensino de cultura africana nas escolas? Os professores, de um modo geral, estão preparados para lidar com a questão racial?

Kabengele - Essa lei já foi objeto de crítica das pessoas que acham que isso também seria uma racialização do Brasil. Pessoas que acham que, sendo a população brasileira uma população mestiça, não é preciso ensinar a cultura do negro, ensinar a história do negro ou da África. Temos uma única história, uma única cultura, que é uma cultura mestiça. Tem pessoas que vão nessa direção, pensam que isso é uma racialização da educação no Brasil.

Mas essa questão do ensino da diversidade na escola não é propriedade do Brasil. Todos os países do mundo lidam com a questão da diversidade, do ensino da diversidade na escola, até os que não foram colonizadores, os nórdicos, com a vinda dos imigrantes, estão tratando da questão da diversidade na escola.

O Brasil deveria tratar dessa questão com mais força, porque é um país que nasceu do encontro das culturas, das civilizações. Os europeus chegaram, a população indígena – dona da terra – os africanos, depois a última onda imigratória é dos asiáticos. Então tudo isso faz parte das raízes formadoras do Brasil que devem fazer parte da formação do cidadão. Ora, se a gente olhar nosso sistema educativo, percebemos que a história do negro, da África, das populações indígenas não fazia parte da educação do brasileiro.

Nosso modelo de educação é eurocêntrico. Do ponto de vista da historiografia oficial, os portugueses chegaram na África, encontraram os africanos vendendo seus filhos, compraram e levaram para o Brasil. Não foi isso que aconteceu. A história da escravidão é uma história da violência. Quando se fala de contribuições, nunca se fala da África. Se se introduzir a história do outro de uma maneira positiva, isso ajuda.

É por isso que a educação, a introdução da história dele no Brasil, faz parte desse processo de construção do orgulho negro. Ele tem que saber que foi trazido e aqui contribuiu com o seu trabalho, trabalho escravizado, para construir as bases da economia colonial brasileira. Além do mais, houve a resistência, o negro não era um João-Bobo que simplesmente aceitou, senão a gente não teria rebeliões das senzalas, o Quilombo dos Palmares, que durou quase um século. São provas de resistência e de defesa da dignidade humana. São essas coisas que devem ser ensinadas. Isso faz parte do patrimônio histórico de todos os brasileiros. O branco e o negro têm que conhecer essa história porque é aí que vão poder respeitar os outros.

Voltando a sua pergunta, as dificuldades são de duas ordens. Em primeiro lugar, os educadores não têm formação para ensinar a diversidade. Estudaram em escolas de educação eurocêntrica, onde não se ensinava a história do negro, não estudaram história da África, como vão passar isso aos alunos? Além do mais, a África é um continente, com centenas de culturas e civilizações. São 54 países oficialmente. A primeira coisa é formar os educadores, orientar por onde começou a cultura negra no Brasil, por onde começa essa história. Depois dessa formação, com certo conteúdo, material didático de boa qualidade, que nada tem a ver com a historiografia oficial, o processo pode funcionar.

Fórum - Outra questão que se discute é sobre o negro nos espaços de poder. Não se veem negros como prefeitos, governadores. Como trabalhar contra isso?

Kabengele - O que é um país democrático? Um país democrático, no meu ponto de vista, é um país que reflete a sua diversidade na estrutura de poder. Nela, você vê mulheres ocupando cargos de responsabilidade, no Executivo, no Legislativo, no Judiciário, assim como no setor privado. E ainda os índios, que são os grandes discriminados pela sociedade. Isso seria um país democrático. O fato de você olhar a estrutura de poder e ver poucos negros ou quase não ver negros, não ver mulheres, não ver índios, isso significa que há alguma coisa que não foi feita nesse país. Como construção da democracia, a representatividade da diversidade não existe na estrutura de poder. Por quê?

Se você fizer um levantamento no campo jurídico, quantos desembargadores e juízes negros têm na sociedade brasileira? Se você for pras universidades públicas, quantos professores negros tem, começando por minha própria universidade? Esta universidade tem cerca de 5 mil professores. Quantos professores negros tem na USP? Nessa grande faculdade, que é a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), uma das maiores da USP junto com a Politécnica, tenho certeza de que na minha faculdade fui o primeiro negro a entrar como professor. Desde que entrei no Departamento de Antropologia, não entrou outro. Daqui três anos vou me aposentar. O professor Milton Santos, que era um grande professor, quase Nobel da Geografia, entrou no departamento, veio do exterior e eu já estava aqui. Em toda a USP, não sou capaz de passar de dez pessoas conhecidas. Pode ter mais, mas não chega a 50, exagerando. Se você for para as grandes universidades americanas, Harvard, Princeton, Standford, você vai encontrar mais negros professores do que no Brasil. Lá eles são mais racistas, ou eram mais racistas, mas como explicar tudo isso?

120 anos de abolição. Por que não houve uma certa mobilidade social para os negros chegarem lá? Há duas explicações: ou você diz que ele é geneticamente menos inteligente, o que seria uma explicação racista, ou encontra explicação na sociedade. Quer dizer que se bloqueou a sua mobilidade. E isso passa por questão de preconceito, de discriminação racial. Não há como explicar isso. Se você entender que os imigrantes japoneses chegaram, nós comemoramos 100 anos recentemente da sua vinda, eles tiveram uma certa mobilidade. Os coreanos também ocupam um lugar na sociedade. Mas os negros já estão a 120 anos da abolição. Então tem uma explicação. Daí a necessidade de se mudar o quadro. Ou nós mantemos o quadro, porque se não mudamos estamos racializando o Brasil, ou a gente mantém a situação para mostrar que não somos racistas. Porque a explicação é essa, se mexer, somos racistas e estamos racializando. Então vamos deixar as coisas do jeito que estão. Esse é o dilema da sociedade.

Revista Fórum – como o senhor vê o tratamento dado pela mídia à questão racial?

Kabengele - A imprensa faz parte da sociedade. Acho que esse discurso do mito da democracia racial é um discurso também que é absorvido por alguns membros da imprensa. Acho que há uma certa tendência na imprensa pelo fato de ser contra as políticas de ação afirmativa, sendo que também não são muito favoráveis a essa questão da obrigatoriedade do ensino da história do negro na escola.

Houve, no mês passado, a II Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Silêncio completo da imprensa brasileira. Não houve matérias sobre isso. Os grandes jornais da imprensa escrita não pautaram isso. O silêncio faz parte do dispositivo do racismo brasileiro. Como disse Elie Wiesel, o carrasco mata sempre duas vezes. A segunda mata pelo silêncio. O silêncio é uma maneira de você matar a consciência de um povo. Porque se falar sobre isso abertamente, as pessoas vão buscar saber, se conscientizar, mas se ficar no silêncio a coisa morre por aí. Então acho que o silêncio da imprensa, no meu ponto de vista, passa por essa estratégia, é o não-dito.

Acabei de passar por uma experiência interessante. Saí da Conferência Nacional e fui para Barcelona, convidado por um grupo de brasileiros que pratica capoeira. Claro, receberam recursos do Ministério das Relações Exteriores, que pagou minha passagem e a estadia. Era uma reunião pequena de capoeiristas e fiz uma conferência sobre a cultura negra no Brasil. Saiu no El Pais, que é o jornal mais importante da Espanha, noticiou isso, uma coisa pequena. Uma conferência nacional deste tamanho aqui não se fala. É um contrassenso. O silêncio da imprensa não é um silêncio neutro, é um silêncio que indica uma certa orientação da questão racial. Tem que não dizer muita coisa e ficar calado. Amanhã não se fala mais, acabou.


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