Escrito por Ariovaldo Umbelino
O governo de Luiz Inácio da Silva abandonou definitivamente a reforma agrária como bandeira política em seu segundo mandato. O II Plano Nacional da Reforma Agrária (PNRA) acabou em 2007 e o governo não colocou na agenda política de 2008 a continuidade da reforma agrária através da elaboração do III PNRA. Dessa forma, retirou-a de suas metas políticas.
A análise dos cinco anos de vigência do II PNRA, entre 2003 e 2007, revela que, embora o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o INCRA tenham divulgado o número oficial de 448.954 famílias assentadas, estes dados referem-se às Relações de Beneficiários emitidas (RBs). Portanto, desagregando-se estes resultados finais, a Meta 1 do II PNRA terminou com apenas 163 mil famílias referentes aos assentamentos novos, ou seja, a verdadeira reforma agrária.
Entre a diferença restante estão 113 mil famílias relativas à Meta 2, ou seja, a regularização fundiária. Estão também as 171 mil famílias enquadradas na reordenação fundiária, pois são fruto principalmente do reconhecimento de assentamentos antigos. E, por fim, estão também as 2 mil famílias de reassentamentos de atingidos por barragens, que jamais poderiam estar enquadrados como reforma agrária. Assim, o governo do PT termina o II PNRA cumprindo apenas 29,6% da Meta 1 estabelecida, de 550 mil famílias novas assentadas.
Além desses dados, o resultado de 2008 é muito mais baixo ainda, pois o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), entre as mais de 70 mil Relações de Beneficiários emitidas, assentou apenas 20 mil famílias novas relativas à reforma agrária. A diferença também ficou por conta da regularização fundiária (25 mil), reordenação fundiária (24,7 mil) e reassentamentos de atingidos por barragens (0,3 mil famílias). Dessa forma, analisando-se os dados relativos aos seis anos do governo atual verifica-se que foram assentadas apenas pouco mais de 180 mil famílias pela reforma agrária. Este baixo desempenho deriva da política deliberada do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA)/INCRA de não se fazer a reforma agrária prevista no II PNRA. Por isso mais de 150 mil famílias acampadas continuam debaixo das lonas pretas na beira das estradas do país.
Como todos sabem, a defesa da reforma agrária sempre foi uma importante bandeira do pensamento progressista e revolucionário, mas o silêncio de parte expressiva dos intelectuais parece indicar que ela foi arreada. Alguns, inclusive, têm se dedicado a produzir textos mostrando que a reforma agrária não é mais necessária historicamente.
Certamente, continuam não levando em consideração em suas análises a continuidade dos conflitos no campo que em 2008 envolveram mais de 500 mil famílias, como revelam os dados divulgados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Esta luta renhida pela terra e pelo território não se limitou apenas ao campesinato multifacetado do país, mas atingiu também fortemente os povos indígenas e os remanescentes de quilombolas.
Assim, volto a repetir, a política de reforma agrária do governo de Luís Inácio da Silva está marcada por dois princípios: não fazê-la nas áreas de domínio do agronegócio, e fazê-la apenas nas áreas onde ela possa "ajudar" o agronegócio. Ou seja, a reforma agrária está definitivamente acoplada à expansão do agronegócio no Brasil.
Este processo contraditório contém a posição governamental de continuar mentindo que está fazendo a reforma agrária, pois caiu sensivelmente o número de famílias novas assentadas nos últimos três anos: em 2006, foram 45 mil, em 2007, somente 31 mil, e em 2008, apenas 20 mil. E contém também a mudança de orientação política a partir de 2008, quando o governo optou pela regularização fundiária através da MP 422. Revela-se assim, de forma cada vez mais clara, a opção do governo do PT pela contra-reforma agrária. Esta opção está revelada por inteira na opção, no ano passado, pela legitimação das terras públicas apropriadas ilegalmente na Amazônia legal pelos grileiros médios com área até 1.5 mil hectares. E reforçou-se depois, em 2009, com a MP 458, que, de forma descarada, abriu a possibilidade para a aquisição das terras griladas até 2.5 mil hectares, dando preferência aos grileiros que as apropriaram ilegalmente.
A justificativa do governo atual para abraçar a legalização das terras públicas do INCRA na Amazônia legal traz uma farsa populista, pois afirmam que vão beneficiar os pequenos posseiros. Na realidade, os pequenos posseiros, que pela legislação atual já têm este direito constitucional da legitimação de suas posses, ocupam apenas 20% dessas terras. E mais, nos primeiros seis anos deste governo, o INCRA muito pouco fez para regularizar essas posses, pois atingiu apenas 17% da Meta 2 estabelecida no II PNRA.
Assim, a regularização fundiária vai beneficiar os grileiros do agronegócio que de forma ilegal apoderam-se das terras públicas do INCRA. E mais, esta opção revela que o INCRA não vai solicitar na justiça a reintegração de posse de suas terras griladas, como manda a legislação em vigor, mas vai tentar garantir as terras griladas para o agrobanditismo. É por isso que a violência continua na Amazônia legal.
Esta opção pela regularização da grilagem das terras públicas revela que o governo de Luiz Inácio da Silva está substituindo a política de reforma agrária pela política de regularização fundiária. Consolida-se dessa forma, mais uma vez, a vitória do agronegócio na questão agrária brasileira e a adesão definitiva da política agrária e fundiária do MDA/INCRA aos interesses do agrobanditismo, dos grileiros de terra públicas do INCRA e da reforma agrária na Amazônia Legal. As assinaturas pelo ministro do MDA e pelo presidente da República da MP 422 e da MP 458 refletem, pois, a consolidação da contra-reforma agrária do governo petista no segundo mandato.
Todos estes atos aparentemente legais revelam o "esforço" do MDA/INCRA em tentar, a todo custo, mudar a legislação para ampliar a área passível de regularização fundiária ou de alienação aos ocupantes ilegais das terras públicas sob sua responsabilidade. Esta adesão à regularização da grilagem revela-se nas notícias no site do INCRA: "agora eles [os grileiros] poderão comprar do governo federal as terras que já ocupavam há anos e não vão precisar concorrer com outros interessados" ("Assinada MP para regularização fundiária da Amazônia - Publicado em: 26/03/08" - http://www.incra.gov.br).
Estas ações de dilapidação do patrimônio público vão entregar para o agronegócio mais de 115 milhões hectares de terras públicas potencialmente devolutas e mais 67,8 milhões de hectares que, inclusive, são de propriedade do Incra e estão griladas. Deste total, a área ocupada pelos pequenos posseiros (284 mil) é de apenas 17 milhões de hectares. Portanto, é preciso continuar afirmando que o objetivo da política de contra-reforma agrária do governo de Luiz Inácio da Silva no segundo mandato é, na verdade, legalizar a grilagem de mais de 182 milhões de hectares de terras públicas e devolutas constitucionalmente da reforma agrária, dos povos indígenas, dos remanescentes de quilombolas e da proteção ambiental.
Ariovaldo Umbelino é professor titular de Geografia Agrária pela Universidade de São Paulo (USP). Estudioso dos movimentos sociais no campo e da agricultura brasileira, é autor, entre outros livros, de "Modo capitalista de produção (Ática, 1995)", "Agricultura camponesa no Brasil" (Contexto, 1997).
http://www.correiocidadania.com.br/content/view/3236/9/
Bom dia, um texto bem escrito, esclarecedor quanto a realidade do governo, porém creio que se deu muita ênfase aos números e se deixou de falar na realidade das famílias que precisam da reforma agrária, que mesmo sendo uma reforma é algo necessário como meio e não fim.
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