Escrito por Hernandez Vivan
Em 1980, no colégio Sion em São Paulo, na manhã de 10 de fevereiro, era fundado um partido inédito na história brasileira. Talvez a sua principal característica fosse professar um socialismo livre de amarras e compromissos com a já decadente – tanto política quanto economicamente – União Soviética. Essa recusa ao “socialismo de Estado” não se combinava a um posicionamento acrítico às “democracias ocidentais”, que estavam longe de serem consideradas alternativas. Além disso, esse partido foi capaz de unir, em um momento ímpar da história do Brasil, intelectuais, ex-guerrilheiros autocríticos com a via armada, um largo setor da Igreja Católica e, fundamentalmente, o movimento operário do ABC, que esboçou, desde o início, a dupla recusa – ao bloco capitalista e socialista, ao sindicalismo de negociação e ao sindicalismo etapista do PCB – que então caracterizaria o Partido dos Trabalhadores. Num mesmo palanque Mario Pedrosa, trotskista e um dos principais críticos de arte do país, Apolônio de Carvalho, ex-combatente da Guerra Civil Espanhola e militante histórico do PCB, e Lula, sindicalista cuja ascensão política já era notável e preocupava a ditadura, fazendo parte de um mesmo partido, resultado único – e possivelmente irrepetível – de uma confluência de fatores que ocasionaram a criação de um partido geneticamente operário e apoiado por amplos setores da sociedade civil.
Em que pese, talvez, o “ar romântico” dessa introdução retrospectiva, sobretudo quando iremos tratar de um assunto tão prosaico quanto o aumento da tarifa de ônibus na cidade de Joinville, isso se justifica, pois o pano de fundo do Brasil dos últimos 29 anos foi o Partido dos Trabalhadores e sua prática renovada, cujo fim da ditadura e a resistência ao neoliberalismo são emblemas de sua importância histórica, tanto prática quanto simbólica. O que não implica em dizer que foi o único ator da redemocratização e das primeiras lutas contra as privatizações, mas sim o principal.
Há algumas tentativas de reconstituição do processo que levou o PT de refratário ao neoliberalismo a artífice número um das reformas neoliberais. Não me ocuparei dessas tentativas, pretendo apenas esboçar mais um fato que somente uma explicação global será capaz de dar sentido pleno. Trata-se, strictu sensu, da política de transporte, notadamente coletivo e urbano, aplicada pelo PT entre 89-92 em São Paulo e o que se desenha na prefeitura de Joinville, a partir da posse de 2009. Vinte são os anos que separam esses dois eventos e mais que pressupor um tempo vazio que escoa entre um e outro, trata-se de mostrar as diferenças qualitativas, sem pretender nenhum exercício infrutífero de futurologia.
O governo Luiza Erundina implementou a municipalização do transporte coletivo na São Paulo da transição das décadas de 80 a 90. A efervescência política, cabe mencionar, era enorme: a aprovação de uma constituição muitíssimo superior as anteriores e na qual o PT desempenhou um papel fundamental e a quase eleição de Lula à presidência da República, pregando um susto que as elites do país aprenderam a se defender. A municipalização do transporte consistia em rever as planilhas de custo (o que foi feito por meio de análise técnica do Centro Brasileiro de Planejamento, o CEBRAP) e em suspender as concessões, instituindo um modelo de “frete” com as empresas de transporte, pagando a elas por kilômetro rodado (com vistas a impedir a superlotação que o modelo de pagamento por pessoa ocasiona). A municipalização seria financiada por “impostos progressivos”, pagos pelas parcelas mais ricas da população (IPTU sobretaxado em mansões de luxo, grandes terrenos, terrenos baldios etc.). A municipalização produziu como conseqüência um maior controle público sobre o transporte. As linhas, as rotas, os horários eram decididos pelo poder público em consulta aos movimentos populares da época. A municipalização reforçou, ainda, a empresa pública de transporte de São Paulo que passou a apropriar-se dos ônibus com certo tempo de uso das demais concessionárias (segundo a lógica de que o ônibus foi pago por dinheiro público em X anos e, logo, deve passar ao poder público após pagamento, golpe certeiro na ideia de propriedade privada) e cuja meta era estatização integral do sistema, num prazo previsto de 8 anos – o que gerou protestos de petistas afoitos: queriam uma estatização integral e imediata, sem nenhuma mediação. À época, Lula limitava-se a dizer que não era favorável a “ônibus gratuito”, mas sim que o trabalhador ganhasse um salário suficiente que o permitisse pagar a tarifa. O sentido público da ideia de transporte que se perde nessa fala parece evidente.
Um governo socialista? Socializante, no máximo. Mais e provocativamente: diria que um governo tipicamente social-democrata – embora esse termo tenha um sentido outro quando considerado nos países abaixo da linha do Equador. A social-democracia européia do pós-guerra seria sensível a uma política dessa modalidade. No entanto, no Brasil, autocrático de nascença, a social-democracia só podia nascer pela mão dos trabalhadores – e não das classes médias gelatinosas que supostamente sustentam o PSDB –, e assim foi.
Um projeto piloto de Tarifa Zero, ônibus pago por impostos, mas gratuito diretamente ao acesso da população, foi aplicado em uma comunidade de 200.000 pessoas em São Paulo. Vale lembrar: 200.000 pessoas é uma população maior do que a população de boa parte das cidades catarinenses. O projeto, desnecessário dizer, foi um sucesso.
O epílogo é triste: tudo foi desfeito na gestão seguinte da prefeitura encabeçada por Paulo Maluf, o ex-candidato da linha dura da ditadura ao Colégio Eleitoral contra Tancredo Neves. Não por acaso, o que sobrou da municipalização teve fim pelas mãos de Marta Suplicy, do Partido dos Trabalhadores.
O presente não apresenta, nem de longe, a conjuntura explosiva que precedeu o governo Erundina. Há hoje um consenso em torno de Lula. Pesquisas indicam 70% de aprovação. A reforma neoliberal da previdência aprovada, a trabalhista e a universitária desenhadas, o atrelamento sintomático da CUT e da UNE ao governo, a autonomia do Banco Central e as bravatas de Lula sobre a crise econômica mundial são alguns elementos da situação política do país quando da posse de Carlito Merss na prefeitura de Joinville.
Embora seja mecânico demais supor que a conjuntura determina a política, é certo que há relações entre uma e outra. Carlito Merss, e o PT Joinville de maneira geral, pensam e agem sobre essa inação geral, que é mantida e estimulada, pois agora PT é governo, e, via de regra, governos não querem perturbações. A eleição de Carlito estava esboçada muito antes da campanha e o fator Lula foi fundamental. O PT Joinville sabia disso. As propostas do então candidato Carlito eram notáveis no que se refere à modéstia delas: sem empresa de asfalto, sem empresa pública de ônibus, apenas uma modesta ideia de subsídio ao transporte. Municipalização? A exemplo da historiografia soviética, cuja característica era apagar traços do passado que comprometessem o presente, uma borracha foi passada na experiência do governo Erundina. O problema do transporte tornou-se amplo demais para ser resolvido nos estritos limites do município: era necessário uma política nacional – se Erundina, o PT São Paulo da década de 90 e os movimentos populares houvessem esperado uma solução de Collor, nada no transporte seria feito; logo, o PT complexifica a questão a ponto de sobrar apenas a modéstia proposta do subsídio.
O transformismo do PT deixou alguns lugares vagos na arena política. Com projetos mais ousados, muito embora ainda aquém dos projetos de São Paulo, Kennedy Nunes e Rodrigo Bornholdt buscaram ganhar espaço com a pauta do transporte. Kennedy menos, Rodrigo mais, o fato é que o PT deixou órfãos, pessoas que se identificaram historicamente com suas propostas e cabia resgata-las, as pessoas e as propostas. Rodrigo, saído do PMDB, refugiou-se sob a história do trabalhismo brasileiro e buscou ser o elo de ligação entre interesses populares e a política. Uma eleição, notou-se, não foi suficiente para reestabelecer esse elo perdido. Ambos apoiaram Carlito, o que quase criou uma situação constrangedora: PP, partido de Paulo Maluf citado acima, e PDT, partido de Carlos Lupi, sucessor opaco de Brizola e Ministro do Trabalho do Governo Lula, com um programa mais à esquerda que o PT na questão transporte.
Carlito foi cuidadoso durante toda a eleição em não se comprometer com nada ousado: o poder estava à vista e quase ao alcance da mão. Após a posse, a ideia de subsídio foi progressivamente abandonada. Primeiro ornada sob belos argumentos políticos: subsídio é tirar dinheiro da saúde e da educação e “doa-lo” para empresas privadas – argumento idêntico do Movimento Passe Livre e, em seguida, da Frente de Luta pelo Transporte Público. A moldura mostrou-se falsa e Nelson Trigo, vice de Kennedy, foi mais claro: há um rombo de 100 milhões de reais na prefeitura, logo, o subsídio está descartado.
As duas últimas declarações de Carlito vão na direção de um aumento que recupere o índice da inflação – “Minha vontade era dar a inflação, já que eles têm data-base (negociação salarial) em maio” (AN, 13/02) – e na democratização da planilha (JND, 16/02). O primeiro argumento é frágil por duas ordens de razões contrárias, que mostram subrepticiamente o que o PT tenta conciliar. Em primeiro lugar, considerado o aspecto verdadeiro da ideia, alguém poderia argumentar, e certamente seriam as atuais concessionárias de transporte, que não faz sentido utilizar a inflação como critério, pois o diesel, insumo cujas reclamações são mais presentes no discurso das empresas, possui uma variação que não se guia pela inflação, de modo que aumentar a tarifa por meio da inflação não recupera os “investimentos” – eufemismo de lucro – das empresas. Nesse caso, há duas alternativas: ou se aumenta a tarifa até a exclusão da imensa maioria dos usuários ou, o que no fundo é o mesmo sob outro aspecto, reconhece-se que o modelo de transporte praticado pelas empresas é antissocial, portanto impraticável e passível de superação. Em suma, e o que é pedir demais a essa altura da quadra histórica, reconhece-se o fracasso do modelo privado de transporte em prover mobilidade à população. Apenas um dado sobre esse ponto: 39 milhões de pessoas são excluídas do transporte coletivo em todo o Brasil em razão da pura e simples falta de dinheiro para pagar a tarifa. 39 milhões é a população, inteira, da Argentina. Parece razoável considerar que o modelo de transporte privado, hegemônico no Brasil, é um fracasso no que se propõe enquanto serviço público: transportar.
Voltando. A inflação, na verdade, se revela um índice mais “democrático” na medida em que os salários dos trabalhadores avançam, em geral, no mesmo ritmo que a inflação – embora isso também seja questionável, há setores do funcionalismo que não tem recomposição salarial há vários anos. Nesse sentido o argumento da inflação, utilizado por Carlito é verdadeiro. Ou melhor: meio-verdadeiro. Cabe radicaliza-lo. O AN de 12 de janeiro mostra que a tarifa aumentou 109,2% acima da inflação. Isso indica que, se a tarifa deve guiar-se por índices inflacionários, ela deve baixar 109,2%, o que levaria seu preço a ser por volta de R$1,17. Assim, o argumento, no limite, extrai conseqüências mais radicais que sua enunciação rápida supõe. O argumento é, por um lado, falso para os empresários; por outro, insuficiente para os movimentos sociais. Em suma, um argumento conciliador que, esquecido o histórico, objetivamente privilegia os empresários.
A democratização das planilhas é um processo muito importante, embora, e isso seja reconhecido pelo próprio prefeito em seu texto de divulgação à população, é insuficiente para democratizar o transporte como um todo. Novamente, a modéstia é a tônica do discurso.
A disparidade entre Carlito e Erundina – ou melhor, até porque o destino político de Erundina é pouco defensável, entre o PT dos fins de 80 para o PT de 2009 – é notável. A aliança entre movimentos sociais e PT, há algum tempo desfeita, simbolicamente pela rejeição a presença de Lula no V Congresso do MST, foi substituída pela aliança com a burguesia nacional – desde os Bogo/Harger até a ACIJ e um projeto de UFSC enquanto “pólo tecnológico”, privilegiando as instalações públicas para um novo processo de acumulação de capital ou, na fórmula da esquerda reformista, “desenvolvimento”. O fantasma da aliança com a burguesia nacional, perseguido à exaustão pelo PCB durante certa época, foi realizado pelo PT – que nasceu da negação do PCB. As “democracias ocidentais” que se tornaram experimentos do neoliberalismo, as quais o PT carregava ojeriza no bojo de suas concepções, também serviram de modelo para o recrudescimento do neoliberalismo nos confins do sistema capitalista – no centro, com o fim da social-democracia, na periferia com a adesão prévia do PT ao programa do inimigo, como definiu o filósofo Paulo Arantes num texto célebre –, cujo protagonismo do PT, no que se refere à cooptação de centrais sindicais e estudantis, demonstrou enfaticamente a viabilidade da aliança burguesia-trabalhadores no que tange à destruição de direitos com mais êxito e alcance hegemônico que Fernando Henrique Cardoso sequer suspeitou. Parece óbvio demais dizer, mas vá lá: nunca há aliança simétrica entre burguesia e trabalhadores, ao contrário, ela é sempre feita em benefício dos primeiros. A hegemonia é o cimento da aliança e FHC não era capaz de articular interesses tão conflitantes. Lula o exato contrário. O PT de Joinville apresenta um movimento similar ao do PT nacional, à diferença dos detalhes.
O transporte é apenas um sintoma. Sintoma de um projeto decadente do ponto de vista da transformação social, mas não de viabilidade eleitoral – o que é outro debate. Se o projeto iniciado no Colégio Sion, cujo aniversário de 29 anos se completou a pouco, mostrou sinais de esgotamento, cabe deixar o que lhe sobrou de vazio – uma sigla e uma estrela – para trás e reconstruí-lo no que ele tinha de melhor. Em Joinville, hoje, reconstruí-lo significa lutar contra o vazio de uma sigla e a opacidade de uma estrela.
Em que pese, talvez, o “ar romântico” dessa introdução retrospectiva, sobretudo quando iremos tratar de um assunto tão prosaico quanto o aumento da tarifa de ônibus na cidade de Joinville, isso se justifica, pois o pano de fundo do Brasil dos últimos 29 anos foi o Partido dos Trabalhadores e sua prática renovada, cujo fim da ditadura e a resistência ao neoliberalismo são emblemas de sua importância histórica, tanto prática quanto simbólica. O que não implica em dizer que foi o único ator da redemocratização e das primeiras lutas contra as privatizações, mas sim o principal.
Há algumas tentativas de reconstituição do processo que levou o PT de refratário ao neoliberalismo a artífice número um das reformas neoliberais. Não me ocuparei dessas tentativas, pretendo apenas esboçar mais um fato que somente uma explicação global será capaz de dar sentido pleno. Trata-se, strictu sensu, da política de transporte, notadamente coletivo e urbano, aplicada pelo PT entre 89-92 em São Paulo e o que se desenha na prefeitura de Joinville, a partir da posse de 2009. Vinte são os anos que separam esses dois eventos e mais que pressupor um tempo vazio que escoa entre um e outro, trata-se de mostrar as diferenças qualitativas, sem pretender nenhum exercício infrutífero de futurologia.
O governo Luiza Erundina implementou a municipalização do transporte coletivo na São Paulo da transição das décadas de 80 a 90. A efervescência política, cabe mencionar, era enorme: a aprovação de uma constituição muitíssimo superior as anteriores e na qual o PT desempenhou um papel fundamental e a quase eleição de Lula à presidência da República, pregando um susto que as elites do país aprenderam a se defender. A municipalização do transporte consistia em rever as planilhas de custo (o que foi feito por meio de análise técnica do Centro Brasileiro de Planejamento, o CEBRAP) e em suspender as concessões, instituindo um modelo de “frete” com as empresas de transporte, pagando a elas por kilômetro rodado (com vistas a impedir a superlotação que o modelo de pagamento por pessoa ocasiona). A municipalização seria financiada por “impostos progressivos”, pagos pelas parcelas mais ricas da população (IPTU sobretaxado em mansões de luxo, grandes terrenos, terrenos baldios etc.). A municipalização produziu como conseqüência um maior controle público sobre o transporte. As linhas, as rotas, os horários eram decididos pelo poder público em consulta aos movimentos populares da época. A municipalização reforçou, ainda, a empresa pública de transporte de São Paulo que passou a apropriar-se dos ônibus com certo tempo de uso das demais concessionárias (segundo a lógica de que o ônibus foi pago por dinheiro público em X anos e, logo, deve passar ao poder público após pagamento, golpe certeiro na ideia de propriedade privada) e cuja meta era estatização integral do sistema, num prazo previsto de 8 anos – o que gerou protestos de petistas afoitos: queriam uma estatização integral e imediata, sem nenhuma mediação. À época, Lula limitava-se a dizer que não era favorável a “ônibus gratuito”, mas sim que o trabalhador ganhasse um salário suficiente que o permitisse pagar a tarifa. O sentido público da ideia de transporte que se perde nessa fala parece evidente.
Um governo socialista? Socializante, no máximo. Mais e provocativamente: diria que um governo tipicamente social-democrata – embora esse termo tenha um sentido outro quando considerado nos países abaixo da linha do Equador. A social-democracia européia do pós-guerra seria sensível a uma política dessa modalidade. No entanto, no Brasil, autocrático de nascença, a social-democracia só podia nascer pela mão dos trabalhadores – e não das classes médias gelatinosas que supostamente sustentam o PSDB –, e assim foi.
Um projeto piloto de Tarifa Zero, ônibus pago por impostos, mas gratuito diretamente ao acesso da população, foi aplicado em uma comunidade de 200.000 pessoas em São Paulo. Vale lembrar: 200.000 pessoas é uma população maior do que a população de boa parte das cidades catarinenses. O projeto, desnecessário dizer, foi um sucesso.
O epílogo é triste: tudo foi desfeito na gestão seguinte da prefeitura encabeçada por Paulo Maluf, o ex-candidato da linha dura da ditadura ao Colégio Eleitoral contra Tancredo Neves. Não por acaso, o que sobrou da municipalização teve fim pelas mãos de Marta Suplicy, do Partido dos Trabalhadores.
O presente não apresenta, nem de longe, a conjuntura explosiva que precedeu o governo Erundina. Há hoje um consenso em torno de Lula. Pesquisas indicam 70% de aprovação. A reforma neoliberal da previdência aprovada, a trabalhista e a universitária desenhadas, o atrelamento sintomático da CUT e da UNE ao governo, a autonomia do Banco Central e as bravatas de Lula sobre a crise econômica mundial são alguns elementos da situação política do país quando da posse de Carlito Merss na prefeitura de Joinville.
Embora seja mecânico demais supor que a conjuntura determina a política, é certo que há relações entre uma e outra. Carlito Merss, e o PT Joinville de maneira geral, pensam e agem sobre essa inação geral, que é mantida e estimulada, pois agora PT é governo, e, via de regra, governos não querem perturbações. A eleição de Carlito estava esboçada muito antes da campanha e o fator Lula foi fundamental. O PT Joinville sabia disso. As propostas do então candidato Carlito eram notáveis no que se refere à modéstia delas: sem empresa de asfalto, sem empresa pública de ônibus, apenas uma modesta ideia de subsídio ao transporte. Municipalização? A exemplo da historiografia soviética, cuja característica era apagar traços do passado que comprometessem o presente, uma borracha foi passada na experiência do governo Erundina. O problema do transporte tornou-se amplo demais para ser resolvido nos estritos limites do município: era necessário uma política nacional – se Erundina, o PT São Paulo da década de 90 e os movimentos populares houvessem esperado uma solução de Collor, nada no transporte seria feito; logo, o PT complexifica a questão a ponto de sobrar apenas a modéstia proposta do subsídio.
O transformismo do PT deixou alguns lugares vagos na arena política. Com projetos mais ousados, muito embora ainda aquém dos projetos de São Paulo, Kennedy Nunes e Rodrigo Bornholdt buscaram ganhar espaço com a pauta do transporte. Kennedy menos, Rodrigo mais, o fato é que o PT deixou órfãos, pessoas que se identificaram historicamente com suas propostas e cabia resgata-las, as pessoas e as propostas. Rodrigo, saído do PMDB, refugiou-se sob a história do trabalhismo brasileiro e buscou ser o elo de ligação entre interesses populares e a política. Uma eleição, notou-se, não foi suficiente para reestabelecer esse elo perdido. Ambos apoiaram Carlito, o que quase criou uma situação constrangedora: PP, partido de Paulo Maluf citado acima, e PDT, partido de Carlos Lupi, sucessor opaco de Brizola e Ministro do Trabalho do Governo Lula, com um programa mais à esquerda que o PT na questão transporte.
Carlito foi cuidadoso durante toda a eleição em não se comprometer com nada ousado: o poder estava à vista e quase ao alcance da mão. Após a posse, a ideia de subsídio foi progressivamente abandonada. Primeiro ornada sob belos argumentos políticos: subsídio é tirar dinheiro da saúde e da educação e “doa-lo” para empresas privadas – argumento idêntico do Movimento Passe Livre e, em seguida, da Frente de Luta pelo Transporte Público. A moldura mostrou-se falsa e Nelson Trigo, vice de Kennedy, foi mais claro: há um rombo de 100 milhões de reais na prefeitura, logo, o subsídio está descartado.
As duas últimas declarações de Carlito vão na direção de um aumento que recupere o índice da inflação – “Minha vontade era dar a inflação, já que eles têm data-base (negociação salarial) em maio” (AN, 13/02) – e na democratização da planilha (JND, 16/02). O primeiro argumento é frágil por duas ordens de razões contrárias, que mostram subrepticiamente o que o PT tenta conciliar. Em primeiro lugar, considerado o aspecto verdadeiro da ideia, alguém poderia argumentar, e certamente seriam as atuais concessionárias de transporte, que não faz sentido utilizar a inflação como critério, pois o diesel, insumo cujas reclamações são mais presentes no discurso das empresas, possui uma variação que não se guia pela inflação, de modo que aumentar a tarifa por meio da inflação não recupera os “investimentos” – eufemismo de lucro – das empresas. Nesse caso, há duas alternativas: ou se aumenta a tarifa até a exclusão da imensa maioria dos usuários ou, o que no fundo é o mesmo sob outro aspecto, reconhece-se que o modelo de transporte praticado pelas empresas é antissocial, portanto impraticável e passível de superação. Em suma, e o que é pedir demais a essa altura da quadra histórica, reconhece-se o fracasso do modelo privado de transporte em prover mobilidade à população. Apenas um dado sobre esse ponto: 39 milhões de pessoas são excluídas do transporte coletivo em todo o Brasil em razão da pura e simples falta de dinheiro para pagar a tarifa. 39 milhões é a população, inteira, da Argentina. Parece razoável considerar que o modelo de transporte privado, hegemônico no Brasil, é um fracasso no que se propõe enquanto serviço público: transportar.
Voltando. A inflação, na verdade, se revela um índice mais “democrático” na medida em que os salários dos trabalhadores avançam, em geral, no mesmo ritmo que a inflação – embora isso também seja questionável, há setores do funcionalismo que não tem recomposição salarial há vários anos. Nesse sentido o argumento da inflação, utilizado por Carlito é verdadeiro. Ou melhor: meio-verdadeiro. Cabe radicaliza-lo. O AN de 12 de janeiro mostra que a tarifa aumentou 109,2% acima da inflação. Isso indica que, se a tarifa deve guiar-se por índices inflacionários, ela deve baixar 109,2%, o que levaria seu preço a ser por volta de R$1,17. Assim, o argumento, no limite, extrai conseqüências mais radicais que sua enunciação rápida supõe. O argumento é, por um lado, falso para os empresários; por outro, insuficiente para os movimentos sociais. Em suma, um argumento conciliador que, esquecido o histórico, objetivamente privilegia os empresários.
A democratização das planilhas é um processo muito importante, embora, e isso seja reconhecido pelo próprio prefeito em seu texto de divulgação à população, é insuficiente para democratizar o transporte como um todo. Novamente, a modéstia é a tônica do discurso.
A disparidade entre Carlito e Erundina – ou melhor, até porque o destino político de Erundina é pouco defensável, entre o PT dos fins de 80 para o PT de 2009 – é notável. A aliança entre movimentos sociais e PT, há algum tempo desfeita, simbolicamente pela rejeição a presença de Lula no V Congresso do MST, foi substituída pela aliança com a burguesia nacional – desde os Bogo/Harger até a ACIJ e um projeto de UFSC enquanto “pólo tecnológico”, privilegiando as instalações públicas para um novo processo de acumulação de capital ou, na fórmula da esquerda reformista, “desenvolvimento”. O fantasma da aliança com a burguesia nacional, perseguido à exaustão pelo PCB durante certa época, foi realizado pelo PT – que nasceu da negação do PCB. As “democracias ocidentais” que se tornaram experimentos do neoliberalismo, as quais o PT carregava ojeriza no bojo de suas concepções, também serviram de modelo para o recrudescimento do neoliberalismo nos confins do sistema capitalista – no centro, com o fim da social-democracia, na periferia com a adesão prévia do PT ao programa do inimigo, como definiu o filósofo Paulo Arantes num texto célebre –, cujo protagonismo do PT, no que se refere à cooptação de centrais sindicais e estudantis, demonstrou enfaticamente a viabilidade da aliança burguesia-trabalhadores no que tange à destruição de direitos com mais êxito e alcance hegemônico que Fernando Henrique Cardoso sequer suspeitou. Parece óbvio demais dizer, mas vá lá: nunca há aliança simétrica entre burguesia e trabalhadores, ao contrário, ela é sempre feita em benefício dos primeiros. A hegemonia é o cimento da aliança e FHC não era capaz de articular interesses tão conflitantes. Lula o exato contrário. O PT de Joinville apresenta um movimento similar ao do PT nacional, à diferença dos detalhes.
O transporte é apenas um sintoma. Sintoma de um projeto decadente do ponto de vista da transformação social, mas não de viabilidade eleitoral – o que é outro debate. Se o projeto iniciado no Colégio Sion, cujo aniversário de 29 anos se completou a pouco, mostrou sinais de esgotamento, cabe deixar o que lhe sobrou de vazio – uma sigla e uma estrela – para trás e reconstruí-lo no que ele tinha de melhor. Em Joinville, hoje, reconstruí-lo significa lutar contra o vazio de uma sigla e a opacidade de uma estrela.
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