Debate surgido de audiência no STF sobre sistema de cotas raciais põe em relevo os laços entre passado escravista e políticas afirmativas.
“Qu’on le veuille ou non, le passé ne peut en aucune façon me guider dans l’actualité.” Frantz Fanon
Causou polêmica a decisão do ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), quando decidiu convocar audiência pública para tratar da inconstitucionalidade ou não do sistema de “cotas raciais” vigente no país. Mais polêmicas foram as declarações do senador Demóstenes Torres (DEM-GO) em torno do assunto. O senador pretendeu “lavar as mãos” no lavabo da história. Sua retórica eximiu qualquer responsabilidade brasileira no tráfico negreiro, pois os africanos praticavam a escravidão na própria África, sentenciou o senador. Ainda fez uma apologia carnavalesca da miscigenação no Brasil. Enfim, se esforçou para minar alguns fundamentos históricos da política de “cotas raciais”, adotada em mais de 60 instituições de ensino superior em todo o país.
Nos últimos dias, alguns jornalistas, historiadores e sociólogos contribuíram para o debate na imprensa nacional. Mesmo que as cotas e outras políticas afirmativas suscitem controvérsias, ao menos, uma coisa é certa: urge estudar a história da África.
Se alguns senadores da República não tiveram a chance de estudar a recente historiografia e conheceram de través os clássicos, as novas gerações têm sobre eles uma grande vantagem. Após a Lei nº 10.639, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afrobrasileira nas escolas, a tendência é melhorar o nível de formação dos discentes e, por conseguinte, da nova geração de políticos.
Para se precaver da tendência revisionista ou de fazer tabula rasa da história afrobrasileira, especialmente no que tange à escravidão, o estudo da história da África é, no mínimo, indispensável. Nas palavras do embaixador Alberto Costa e Silva, “a história da África é importante para nós, brasileiros, porque ajuda a explicar-nos. Mas é importante também por seu valor próprio e porque nos faz melhor compreender o grande continente que fica em nossa fronteira leste e de onde proveio quase a metade de nossos antepassados. Não pode continuar o seu estudo afastado de nossos currículos, como se fosse matéria exótica”.
Cabe lembrar que esforços têm sido feito nesse sentido nas últimas décadas. Agostinho da Silva foi um dos idealizadores do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade da Bahia, instituição que formou vários especialistas como, por exemplo, Yeda Pessoa de Castro, Vivaldo Costa Lima e Paulo Fernando de Moraes Farias. Também foram criados o Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo e o Centro de Estudos Afroasiáticos da Universidade Cândido Mendes (RJ). Cada um desses renomados centros tem sua revista que, com regular periodicidade ao longo de décadas, divulga o trabalho de especialistas em História da África ou de História Afrobrasileira. Com a consolidação dos cursos em nível de pós-graduação em história no país, a produção historiográfica brasileira tem sido uma das mais promissoras, em termos quantitativos e qualitativos, quando o assunto é escravidão atlântica.
Traficantes de escravos como Francisco Félix de Sousa, Joaquim Pereira Marinho e Domingo José Martins não são mais nomes desconhecidos dos estudantes de história. Sabe-se hoje o quanto o Brasil teve uma posição de supina importância no comércio de escravos, como o demonstraram Luiz Felipe de Alencastro em Trato dos Viventes e Manolo Florentino em Costas Negras, obras que já nasceram clássicas. Além desses estudos, a nova historiografia está conseguindo tirar do anonimato trajetórias de escravos que não puderam eles mesmos escrever sua própria biografia, como Equiano, ex-escravo, abolicionista e um dos primeiros escritores negros de língua inglesa. Do historiador João José Reis, o livro recentemente publicado sobre a biografia do africano Domingos Sodré é um belo exemplo dessa nova tendência historiográfica.
Na mesma vaga, tem-se o livro de Randy Sparks sobre a trajetória de dois príncipes africanos em Calabar (na costa da Nigéria) que, de comerciantes de escravos, viraram escravos nas mãos dos ingleses em 1767. Cativos na Virgínia, eles conseguem finalmente fugir para Bristol, onde se convertem ao metodismo. Com a ajuda de abolicionistas ingleses, eles conquistam a liberdade e voltam para a África, onde acabam se envolvendo novamente com o comércio de escravos. The Two Princes of Calabar (Os Dois Príncipes de Calabar) foi publicado pela Editora da Universidade de Harvard em 2004 e ainda aguarda tradução para o português.
Se os relatos de traficantes como Theodor Canot ou William Snelgrave, de abolicionistas como o inglês William Wilberforce ou o africano Equiano e as histórias de vida como de Domingos Sodré ou Robin John nos trazem diferentes perspectivas sobre a escravatura, resta imponderável a experiência trágica de quem passou pelo crisol da escravidão.
Historiadores como John Thornton, Paul Lovejoy e Olivier Pétré-Grenouilleau têm mostrado diversos aspectos da escravidão africana. Não restam dúvidas sobre as dezenas de reinos africanos que participaram do comércio de escravos, das centenas de régulos e comerciantes nativos que viviam da escravidão africana, dos milhares de europeus envolvidos com a compra e venda pelos portos negreiros do Atlântico e de milhões de africanos escravizados e levados para as Américas. No Brasil, além de uma minoria branca proprietária de escravos, houve, sim, brasileiros traficantes, mulatos e mesmo negros senhores de escravos. Mas o que isso pode mudar diante do insofismável número de afrodescendentes vítimas da exclusão social?
O estudo da história não deve ser confundido com um tribunal. Isso não significa mare liberum para navegar opiniões levando apenas lastro. Nesse sentido, a historiografia deve balizar as discussões. Diante dos arrivistas e panfletários de plantão, a presença dos historiadores no debate sobre as cotas ou demais políticas afirmativas favorece o esclarecimento de certas articulações entre o passado e o presente.
Mas as cotas não servem para corrigir o passado. Ele é irreversível e, por conseguinte, incorrigível. As cotas servem para projetar um futuro diferente, isto é, sem as desigualdades “raciais” do passado e do presente. No seu livro A Escrita da História, Michel de Certeau nos ensina que o lugar que a história destina ao passado é igualmente um modo de dar lugar a um futuro.
* SÍLVIO MARCUS DE SOUZA CORREA é Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina, doutor em sociologia pela Westfälische-Wilhelms-Universität Münster, co-autor (com René Gertz) de “Historiografia Alemã Pós-muro” (Edunisc, 2007)
Causou polêmica a decisão do ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), quando decidiu convocar audiência pública para tratar da inconstitucionalidade ou não do sistema de “cotas raciais” vigente no país. Mais polêmicas foram as declarações do senador Demóstenes Torres (DEM-GO) em torno do assunto. O senador pretendeu “lavar as mãos” no lavabo da história. Sua retórica eximiu qualquer responsabilidade brasileira no tráfico negreiro, pois os africanos praticavam a escravidão na própria África, sentenciou o senador. Ainda fez uma apologia carnavalesca da miscigenação no Brasil. Enfim, se esforçou para minar alguns fundamentos históricos da política de “cotas raciais”, adotada em mais de 60 instituições de ensino superior em todo o país.
Nos últimos dias, alguns jornalistas, historiadores e sociólogos contribuíram para o debate na imprensa nacional. Mesmo que as cotas e outras políticas afirmativas suscitem controvérsias, ao menos, uma coisa é certa: urge estudar a história da África.
Se alguns senadores da República não tiveram a chance de estudar a recente historiografia e conheceram de través os clássicos, as novas gerações têm sobre eles uma grande vantagem. Após a Lei nº 10.639, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afrobrasileira nas escolas, a tendência é melhorar o nível de formação dos discentes e, por conseguinte, da nova geração de políticos.
Para se precaver da tendência revisionista ou de fazer tabula rasa da história afrobrasileira, especialmente no que tange à escravidão, o estudo da história da África é, no mínimo, indispensável. Nas palavras do embaixador Alberto Costa e Silva, “a história da África é importante para nós, brasileiros, porque ajuda a explicar-nos. Mas é importante também por seu valor próprio e porque nos faz melhor compreender o grande continente que fica em nossa fronteira leste e de onde proveio quase a metade de nossos antepassados. Não pode continuar o seu estudo afastado de nossos currículos, como se fosse matéria exótica”.
Cabe lembrar que esforços têm sido feito nesse sentido nas últimas décadas. Agostinho da Silva foi um dos idealizadores do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade da Bahia, instituição que formou vários especialistas como, por exemplo, Yeda Pessoa de Castro, Vivaldo Costa Lima e Paulo Fernando de Moraes Farias. Também foram criados o Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo e o Centro de Estudos Afroasiáticos da Universidade Cândido Mendes (RJ). Cada um desses renomados centros tem sua revista que, com regular periodicidade ao longo de décadas, divulga o trabalho de especialistas em História da África ou de História Afrobrasileira. Com a consolidação dos cursos em nível de pós-graduação em história no país, a produção historiográfica brasileira tem sido uma das mais promissoras, em termos quantitativos e qualitativos, quando o assunto é escravidão atlântica.
Traficantes de escravos como Francisco Félix de Sousa, Joaquim Pereira Marinho e Domingo José Martins não são mais nomes desconhecidos dos estudantes de história. Sabe-se hoje o quanto o Brasil teve uma posição de supina importância no comércio de escravos, como o demonstraram Luiz Felipe de Alencastro em Trato dos Viventes e Manolo Florentino em Costas Negras, obras que já nasceram clássicas. Além desses estudos, a nova historiografia está conseguindo tirar do anonimato trajetórias de escravos que não puderam eles mesmos escrever sua própria biografia, como Equiano, ex-escravo, abolicionista e um dos primeiros escritores negros de língua inglesa. Do historiador João José Reis, o livro recentemente publicado sobre a biografia do africano Domingos Sodré é um belo exemplo dessa nova tendência historiográfica.
Na mesma vaga, tem-se o livro de Randy Sparks sobre a trajetória de dois príncipes africanos em Calabar (na costa da Nigéria) que, de comerciantes de escravos, viraram escravos nas mãos dos ingleses em 1767. Cativos na Virgínia, eles conseguem finalmente fugir para Bristol, onde se convertem ao metodismo. Com a ajuda de abolicionistas ingleses, eles conquistam a liberdade e voltam para a África, onde acabam se envolvendo novamente com o comércio de escravos. The Two Princes of Calabar (Os Dois Príncipes de Calabar) foi publicado pela Editora da Universidade de Harvard em 2004 e ainda aguarda tradução para o português.
Se os relatos de traficantes como Theodor Canot ou William Snelgrave, de abolicionistas como o inglês William Wilberforce ou o africano Equiano e as histórias de vida como de Domingos Sodré ou Robin John nos trazem diferentes perspectivas sobre a escravatura, resta imponderável a experiência trágica de quem passou pelo crisol da escravidão.
Historiadores como John Thornton, Paul Lovejoy e Olivier Pétré-Grenouilleau têm mostrado diversos aspectos da escravidão africana. Não restam dúvidas sobre as dezenas de reinos africanos que participaram do comércio de escravos, das centenas de régulos e comerciantes nativos que viviam da escravidão africana, dos milhares de europeus envolvidos com a compra e venda pelos portos negreiros do Atlântico e de milhões de africanos escravizados e levados para as Américas. No Brasil, além de uma minoria branca proprietária de escravos, houve, sim, brasileiros traficantes, mulatos e mesmo negros senhores de escravos. Mas o que isso pode mudar diante do insofismável número de afrodescendentes vítimas da exclusão social?
O estudo da história não deve ser confundido com um tribunal. Isso não significa mare liberum para navegar opiniões levando apenas lastro. Nesse sentido, a historiografia deve balizar as discussões. Diante dos arrivistas e panfletários de plantão, a presença dos historiadores no debate sobre as cotas ou demais políticas afirmativas favorece o esclarecimento de certas articulações entre o passado e o presente.
Mas as cotas não servem para corrigir o passado. Ele é irreversível e, por conseguinte, incorrigível. As cotas servem para projetar um futuro diferente, isto é, sem as desigualdades “raciais” do passado e do presente. No seu livro A Escrita da História, Michel de Certeau nos ensina que o lugar que a história destina ao passado é igualmente um modo de dar lugar a um futuro.
* SÍLVIO MARCUS DE SOUZA CORREA é Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina, doutor em sociologia pela Westfälische-Wilhelms-Universität Münster, co-autor (com René Gertz) de “Historiografia Alemã Pós-muro” (Edunisc, 2007)
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Legenda da Foto: "Navio negreiro" de Johann Moritz Rugendas (1830)
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