29 de dezembro de 2009

Passeio pela história da comida afro-brasileira


Por Vilson Caetano

Africanos e africanas desde cedo influenciaram a economia da cidade de Salvador e Recôncavo baiano. Um trabalho realizado nos arquivos da cidade de Cachoeira, por exemplo, foi capaz de nos revelar ocupações variadas. Certo é que muito antes da economia entrar em declínio no século XIX, homens e mulheres negras transitaram nas cidades com gamelas e tabuleiros, verdadeiros altares andantes onde iguarias africanas alternavam-se o tempo todo com comidas, ora de origem indígena, portuguesa, ora moura, africanizadas pelos sentimentos e modos de preparar que faziam referência a um passado que a escravidão não foi capaz de apagar.

Autores como Pierre Verger e Roger Bastide nos legaram trabalhos bastante ilustrativos sobre a importância da arte de mercar e do mercado para os diversos grupos que nos constituíram. Mercado este, atravessado de sacralidade, fato que levou alguns autores à confusão entre a comida ritual e as vendidas nas ruas. É bem certo que muito antes da constituição dos cultos descritos a partir do século XIX, as ruas sempre conheceram “comidas africanas”.

O professor de grego Vilhena, nas suas famosas cartas, nos informa sobre algumas destas iguarias, pena que poucas delas permaneceram no tabuleiro, não cedendo espaço aos modismos e invenções que na atualidade acompanham a cozinha afro-brasileira.

Como esquecer das chamadas “carambolas”, mulheres citadas por Vilhena que regulavam senão a economia, parte dela, impondo seus preços aos peixes comercializados numa das portas da cidades? Chamadas de atravessadoras, estas libertas foram motivo de atenção.

E como não falar sobre as mulheres que vendiam nas suas gamelas carnes como mocotó, fato, sarapatel e outras iguarias ainda hoje condenadas pelo “nutricionismo”, ora amparado pelo discurso higienista, ora pela busca de comidas mais saudáveis?

Gosto muito de uma tela de Debret que retrata a venda nas ruas da cidade antiga do Rio de Janeiro. Vale a pena contemplar os tachos de angu justapostos, denotando que tal iguaria já havia caído no gosto popular. E o vatapá aclamado nas mesas parisienses, segundo Câmara Cascudo? Outro exemplo de iguaria afro-brasileira no mundo.

Não podemos deixar de citar o velho Gilberto Freyre que atento chamou a atenção para os doces dos tabuleiros que nas ruas de Recife rivalizavam com os que saiam dos conventos. Falando em doces, onde foi parar a “amoda”? Será que as doceiras “perderam o ponto”, ou a mistura de rapadura com farinha de mandioca e gengibre não sobreviveu aos novos gostos? E o aberém? Segundo Manuel Querino, transformado em refresco.

Este sim, ainda podemos encontrar em alguns terreiros de candomblé como comida litúrgica. Talvez a sua permanência se explique por fazer parte de iguarias que ninguém tem acesso à sua feitura que não se vê nem a panela, nem o fogo e muito menos a fumaça. É comida sobre a qual ninguém fala, ou não está autorizado a falar pelo “segredo”.Aberém também já foi comida de rua.

Hoje a moda é o akarajé, não o akará bem parecido com os que ainda hoje podem ser encontrados nas ruas de algumas cidades africanas, mas o semelhante ao hambúrguer, acompanhado com o refrigerante de cola. Resguardadas as criticas, que bom que ele permaneceu, juntamente com o abará, a passarinha e o bolinho de estudante. Até a pimenta ficou menos picante, respeitando a exigência da demanda turística.

Não podemos deixar passar as “mulheres do mingau”. Mingaus de milho, tapioca, carimã que continuam presentes dando “sustança” aos fregueses, sem falar no mungunzá e no cuscuz de tapioca que nunca deixaram de ser itinerantes. Hoje transitam nos carrinhos empurrados pelos “meninos”, resistindo a todo e qualquer “discurso higienista” que insiste sobre os perigos da contaminação através das “comidas de rua”.

Bom mesmo foi que estas comidas deram visibilidade nos últimos anos à inserção do homem negro e da mulher negra na economia da cidade de Salvador, os tirando do anonimato e da classificação na maioria das vezes preconceituosa do mercado informal, o que para nós é excelente, pois traz a memória de Maria de São Pedro, Cecília do Bonocô, Aninha e tantas outras mulheres que através do comércio de elementos rituais ou iguarias reforçaram os laços entre partes do Continente Africano, a Ásia e o Brasil.

Estas “mulheres de saia” merecem mesmo o título de “mulheres do partido alto”, ou “homens de elite” como Martiniano Eliseu do Bonfim e Felisberto Sowzer, exímio conhecedor de inglês, conhecido como Benzinho, descendente direto da família Bangboxé.

Homens e mulheres com seus balangandãs, que acumularam riquezas, retraçaram a própria cidade, que mesmo estigmatizados nos legaram a maior fortuna; o orgulho de nos sentirmos seus descendentes quando descobrimos que somos negros.

Vilson Caetano é pós-doutor em antropologia e professor da Ufba

Fonte: http://www.geledes.org.br/textos-relacionados-educacao/passeio-pela-historia-da-comida-afro-brasileira.html


27 de dezembro de 2009

A influência africana no processo de formação da cultura afro-brasileira


Por Márcio Carvalho C. Ferreira

Este artigo tem como intenção analisar a influência cultural dos africanos no Brasil. Por meio da revisão bibliográfica observa-se o intenso intercâmbio cultural ocorrido entre os escravos africanos, os indígenas e os europeus. Essas trocas culturais ocorridas por vários séculos durante o período colonial brasileiro contribuíram para a formação de uma cultura híbrida e bastante rica.
No que se refere à contribuição africana é evidente, principalmente, na culinária, dança, religião, música e língua. Percebe-se, que, essa matriz africana teve um papel importante na formação e delineamento da identidade cultural afro-brasileira, uma que, os escravos possuíam uma grande diversidade cultural devido à sua origem distinta e por pertencerem a diversas etnias com idiomas e tradições distintas, pois, eram oriundos de diversas regiões do continente africano. Já, no Brasil esses africanos souberam assimilar, interpretar e recriar certas práticas de outras culturas com os quais estiveram em contato. Palavras-chaves: Cultura. Identidade. África. Afro - brasileira.

Introdução

A influência africana no processo de formação da cultura afro-brasileira começou a ser delineada a partir do tráfico negreiro. Quando milhões africanos "deixaram" forçadamente o continente africano e despontarem no Brasil para exercer o trabalho compulsório.

O escravo africano era um elemento de suma importância no campo econômico do período colonial sendo considerado "as mãos e os pés dos senhores de engenho porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente" (ANTONIL, 1982, p.89). Contudo, a contribuição africana no período colonial foi muito além do campo econômico, uma vez que, os escravos souberem reviver suas culturas de origem e recriarem novas práticas culturais através do contato com outras culturas.

É importante salientar que não houve uma homogeneidade cultural praticada pelos negros africanos, visto que imperava uma heterogeneidade favorecida pelas origens distintas dos africanos, que apesar de oriundos do continente africano, geralmente os escravos apresentava uma prática cultural diferenciada em alguns aspectos devido à região que pertencia, pois a África caracteriza-se em um continente dividido em países com línguas e culturas diversas.

Além da prática cultural diferenciada ressaltada, os africanos, ainda, incorporaram algumas práticas européias e indígenas, além de, influenciá-los culturalmente.O intercâmbio cultural entre os elementos citados contribuiu para uma formação cultural afro - brasileira híbridae bastante peculiar.

Desenvolvimento

Ao longo do período colonial e monárquico brasileiro foi grande o contingente de escravos africanos no Brasil, visto que, constituía a maior mão - de - obra do período. A contribuição desses escravos foi além da participação econômica, uma vez que, foram inserindo suas práticas, seus costumes e seus rituais religiosos na sociedade Brasileira contribuindo, dessa forma para uma formação cultural peculiar no Brasil.

Importante, ressaltar que as práticas desses escravos africanos eram diferenciadas, pois eles eram oriundos de pontos diferentes do continente africano. De acordo com VAINFAS (2001 p.66), durante o período colonial, quase nada se sabia sobre a origem étnica dos africanos traficados para o Brasil. Porém, ao longo do período passou-se a designá-los a partir da região ou porto de embarque, ou seja, das áreas de procedência.

Apesar da origem diversa dos escravos africanos, dois grupos se destacaram no Brasil: os Bantos e os Sudaneses. Os bantos foram assim, classificados devido à relativa unidade lingüística dos africanos oriundos de Angola, Congo e Moçambique.

Vainfas (2001, p. 67) destaca que:

Os povos bantos predominaram entre os escravos traficados para o Brasil desde o século XVII, concentrando-se na região sudeste, mas espalhados por toda a parte, inclusive na Bahia. (...) Os Bantosoriundos do Congo eram chamados de congo, muxicongo ,loango, cabina, monjolo, ao passo que os de Angola o eram de massangana, cassange, loanda, rebolo, cabundá, quissamã, embaca,benguela.

Essa diversidade fez com os Bantos apresentassem uma especificidade cultural, notadamente na lingüística, nos costumes e, principalmente, no campo religioso, que mesclou aspectos do cristianismo com suas tradições religiosas.

De acordo com Kavinajé (2009, p. 3):

Os bantos, depois de um primeiro período de autonomia religiosa, que se conhece através de documentos históricos, assistiram à transformação de seus cultos. Por um lado, esses deram lugar á macumba; por outro, amoldaram-se às regras dos condomblés nagôs, não se distinguindo deles senão por uma maior tolerância. Os cultos bantos em gradativo declínio acolheram os espíritos dos índios, o que iria levar ao surgimento de um "condomblé de cablocos", e adotaram cantos em língua portuguesa, ao passo que os condomblés nagôs só usam cantos em língua africana.

Já os sudaneses provenientes da África ocidental, Sudão e da Costa da Guiné, contribuíram culturalmente para a formação de uma identidade afro-brasileira, visto que muito de suas práticas culturais imperam atualmente como, por exemplo, o candomblé, prática religiosa dos escravos sudaneses.

No Brasil estes grupos: bantos e sudaneses misturaram-se resultando em cruzamentos biológicos, culturais e religiosos.

De acordo com Paiva (2001, p.36):

Misturavam-se informações, assim como etnias, tradições e práticas culturais. Novas cores eram forjadas pela sociedade colonial e por ela apropriadas para designar grupos diferentes de pessoas, para indicar hierarquização das relações sociais, para impor a diferença dentro de um mundo cada vez mais mestiço. Da cor da pele à dos panos que a escondia ou a valorizava até a pluralidade multicor das ruas coloniais, reflexo de conhecimentos migrantes, aplicados à matéria vegetal, mineral, animal e cultural.

Nota-se que o cruzamento cultural entre estes povos africanos propiciou a construção de uma identidade cultural brasileira, ou cultura afro-brasileira. Uma vez que, eles não temeram em "inventar códigos de comportamentos e de recriarem praticas de sociabilidade e culturais" (Paiva 2001, p.23). Assim, este cruzamento foi resultado de um longo processo que propiciou uma riqueza cultural peculiar ao Brasil.

De acordo com Paiva (2001, p.27), pode-se caracterizar este cruzamento cultural como resultante de uma aproximação entre universos geograficamente afastados, em hibridismos e em impermeabilidades, em (re) apropriações, em adaptações e em sobreposição de representações e de práticas culturais.

Assim, a influência africana foi se tornando visível em vários seguimentos da sociedade colonial, tais como culinária, práticas religiosas, danças, dentre outros valores culturais que foram incorporados pela população brasileira.

Sobre a influência africana Freire (2001, p. 343) destaca que:

Quantas "mães-pretas", amas de leite, negras cozinheiras e quitandeiras influenciaram crianças e adultos brancos (negros e mestiços também), no campo e nas áreas urbanas, com suas histórias, com suas memórias, com suas práticas religiosas, seus hábitos e seus conhecimentos técnicos? Medos, verdades, cuidados, forma de organização social e sentimentos, senso do que é certo e do que é errado, valores culturais, escolhas gastronômicas, indumentárias e linguagem, tudo isso conformou-se no contato cotidiano desenvolvido entre brancos, negros, indígenas e mestiços na Colônia.

Ainda de acordo com Freyre (2001, p. 346), a nossa herança cultural africana é visível no jeito de andar e no falar do brasileiro, pois:

Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolegando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho- de- pé de uma coceira tão boa. De que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama- de- vento, a primeira sensação completa de homem. Do muleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo. (Freyre (2001,p. 348)

Observa-se que de acordo com a citação acima a influência africana foi além cozinha e da mesa, chegando até a cama, pois era comum a iniciação sexual do "senhorzinho" branco ocorrer com uma escrava.Comum também era a prática de feitiços sexuais e afrodisíacos pelos escravos, pois foi na "perícia e no preparo de feitiços sexuais e afrodisíacos que deu tanto prestigio a escravos macumbeiros juntos a senhores brancos já velhos e gastos." Freyre (2001, p. 343),

A influência do escravo negro na vida sexual da família brasileira é destacada por, Freyre (2001, p. 381), assim:

(...) O grosso das crenças e práticas da magia sexual que se desenvolveram no Brasil foram coloridas pelo intenso misticismo do negro; algumas trazidas por ele da África, outras africanas apenas na técnica, servindo-se de bichos e ervas indígenas. Nenhuma mais característica que a feitiçaria do sapo para apressar a realização de casamentos demorados. O sapo tornou-se também, na magia sexual afro-brasileira, o protetor da mulher infiel que, para enganar o marido, basta tomar uma agulha enfiada em retrós verde, fazer com ela uma cruz no rosto do individuo adormecido e coser depois os olhos do sapo.

Além da influência na vida sexual destacado no clássico Casa Grande e Senzala, merecem ênfase as canções que foram modificadas pelas negras.
Também as canções de berço portuguesas, modificou-se a boca da ama negra, alterando nelas palavras; adaptando-as às condições regionais; ligando-as às crenças dos índios e às suas. Assim a velha canção "escuta, escuta menino" aqui amoleceu-se em "durma, durma, meu filhinho", passando Belém de "fonte" portuguesa, a "riacho" brasileiro. Freyre (2001, p. 380)

Observa-se que as amas apropriaram-se das canções de origem portuguesa e as recriaram, dando um toque especial, o toque africano. Isso é perceptível na "infantilização" das palavras das canções.

"A linguagem infantil também aqui se amoleceu ao contato da criança com a ama negra. Algumas palavras, ainda hoje duras ou acres quando pronunciadas pelos portugueses, se amaciaram no Brasil por influência da boca africana. Da boca africana aliada ao clima - outro corruptor das línguas européias, na fervura por que passaram na América tropical e subtropical. Freyre (2001, p. 382)

Deste modo, foi se delineando a língua falada no Brasil, a língua portuguesa que foi amplamente influenciada pelo modo de falar dos escravos africanos.
A ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que com a comida: machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca do menino branco as sílabas moles. Daí esse português de menino que no norte do Brasil, principalmente, é uma das falas mais doces deste mundo. Sem rr nem ss; as sílabas finas moles; palavras que só faltam desmanchar-se na boca da gente. A linguagem infantil brasileira, e mesmo a portuguesa, tem um sabor quase africano: cacá, bumbum, tentén, nenén, tatá, papá, papapo, lili, mimi (...) Amolecimento que se deu em grande parte pela ação da ama negra junto à criança; do escravo preto junto ao filho do senhor branco. Os nomes próprios foram dos que mais se amaciaram, perdendo a solenidade, dissolvendo-se deliciosamente na boca dos escravos. Freyre (2001, p. 382)

Nota-se que o intercâmbio cultural entre os negros africanos, indígenas e portugueses foram intensos, notadamente na língua, costumes, modos, comidas, forma de pensar e práticas religiosas. De acordo com Paiva (2001, p. 185) As trocas culturais e os contatos entre povos de origem muito diversa é algo que, então, fazia parte do dia - a – dia colonial, desde a chegada dos portugueses.Isto, porque, era ampla a vivência cultural da população negra no Brasil colonial, refletindo amplamente na sociedade do período.

Deste intercâmbio cultural formou-se a cultura afro-brasileira, sendo visível à influência africana em todos os aspectos da sociedade brasileira, não sendo possível desvincular a cultura brasileira da africana, da indígena ou da européia.

Para Paiva (2001, p.39) a formação cultural não se deu de forma linear, uniforme e harmônica. Muitos foram os conflitos, as adaptações e os arranjos ao longo do período.

É evidente que não estou sugerindo uma formação linear desse universo cultural, nem estou emprestando-lhe uma harmonia, que, de fato, pouco existiu. Tanto seu processo de formação quanto a convivência no interior dele se deram (e se dão) de maneira conflituosa na maioria dasezes, embora haja, também, adaptações constantes, arranjos e acordos que visam a sua preservação.Paiva (2001, p. 41)

A preservação dessas práticas culturais ocorreu através de aproximações e afastamentos conforme idéia defendida por Paiva (2001, p.40):

A conformação e a preservação do universo cultural dão-se, então, através das aproximações e afastamentos, das interseções, da intervenção de espaços individuais e coletivos, privados e comuns, que envolvem dimensões do viver tão diversas quanto à do material, da utensilagem e das técnicas; dos costumes e tradições, das práticas e das representações culturais; da mitologia e da religião; do físico e concreto, do psicológico e imaginário; da linguagem e das escritas; da dominação, da resistência e do transito entre elas: da temporalidade e da espacialidade; das continuidades e das descontinuidades; da memória e da história. Tudo implicado com os campos da política e do econômico, provocando mutuamente contínuas reordenações e construções sociais.

Desse modo, observa-se a formação e a preservação de uma identidade cultural, bastante plural devido às influências: européia, africana e indígena, favorecendo uma riqueza cultural bastante peculiar. Estas peculiaridades multiculturais manifestaram-se, principalmente, na língua, culinária, música, dança, religião, dentre outros.

Conclusão

Conclui-se que os africanos tiveram um papel importante no processo de formação cultural brasileiro, pois através da inserção de suas práticas e seus costumes na sociedade brasileira contribuíram para a formação de uma identidade cultural afro - brasileira.



“Preservar é muito mais que tombar”




Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP diz que as ações de preservação deveriam retratar o modo de vida de uma sociedade, e não expulsar os moradores para recriar um cenário artificial

Por Márcia Pinheiro

Maria Lucia Bressan Pinheiro é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP) e diretora do Centro de Preservação Cultural Dona Yayá (CPC-USP). Rema contra a corrente segundo a qual apenas monumentos belos deveriam ser preservados. Em entrevista a História Viva, ela diz que esse ramo da arquitetura é pouco prestigiado no Brasil porque prevalecem os interesses econômicos dos especuladores imobiliários.


História Viva – A preservação do patrimônio histórico, no senso comum, tornou-se sinônimo de tombamento no Brasil. Trata-se de uma visão equivocada?

Maria Lucia Bressan Pinheiro – A preservação é muito mais abrangente que o tombamento. A preservação diz respeito a um conjunto de medidas, desde intervenções físicas no bem cultural até políticas públicas. São iniciativas destinadas à preservação do patrimônio para as gerações futuras. O tombamento é uma dessas medidas. Geralmente, é o passo inicial no Brasil, porque não temos uma cultura preservacionista arraigada na sociedade. Somos muito carentes, com problemas básicos não resolvidos, como pobreza e falta de escolaridade, e isso limita a possibilidade de fruição do patrimônio. As pessoas nem param para pensar que existe um passado, com coisas esteticamente bonitas, que contam as nossas origens, a nossa história. A maioria está tão preocupada como básico que nem tem olhos para o prazer. Não há como negar que existe uma hierarquia de necessidades. De outro lado, no mundo inteiro, todos os valores da nossa cultura atual são de descarte, de inventar novidades, buscar o novo pelo novo, até para movimentar a economia. Além disso, como fomos uma colônia, sempre imitamos um paradigma português e europeu. Estamos habituados a esperar modelos de outras sociedades.

HV– Há cidades que tombam pouco e preservam muito? Paris é um exemplo?

Maria Lucia – Certamente há cidades no exterior que preservam mais, em razão do contexto. Os nossos municípios sofreram um processo de crescimento rápido e súbito com a industrialização, a partir dos anos 1930. Instalou-se uma população urbana desenraizada do local. Em Paris e Roma, que preservam mais, as cidades cresceram ao longo de muitos séculos. Passaram por essa fase de explosão, mas quando já eram grandes e tinham uma população arraigada, muito identificada com os centros históricos. Tinham outra relação de pertencimento ao espaço.
HV– A quem interessa a política de só preservar se tombar?

Maria Lucia – Há uma apatia em relação à preservação. Fica tudo a cargo do Estado. No Parlamento, não há representantes desse interesse. Isso acontece porque os atingidos são os especuladores imobiliários. Não são todos, mas há empresas e pessoas que não podem imaginar ter uma atividade lucrativa em uma casa tombada. Um empreendimento, como um restaurante, ficaria muito mais charmoso. Chamo de especuladores aqueles que só veem uma forma de ganhar dinheiro: por meio da destruição.

HV– Por que no Brasil só se pensa em preservar imóveis coloniais?

Maria Lucia – É um viés dos modernistas, de que o século XIX não interessa. O próprio Lucio Costa diz isso. O mélange de estilos daquela época foi visto como algo que não tinha valor algum. Não era nem puro como o colonial, nem puro como o moderno. Esse era o viés de quem trabalhava no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) nos anos 1930-40. Não é democrático privilegiar determinado tipo de bem cultural. Há exemplos de imóveis não coloniais que deveriam ser preservados. O único critério que julgo interessante é de um bem cultural que revele o modo de vida das pessoas. Gosto de ver os vários momentos de uma cidade representados. Há a arquitetura de casas dos Jardins e do Pacaembu (bairros de São Paulo), dos anos 1930, com cara meio normanda, meio espanhola. São impuras, mas muito características de uma época. As fazendas de cacau no Nordeste são outro exemplo. Há ainda a arquitetura alemã e italiana no Sul do país.

HV– Como evitar que um centro histórico dito preservado fique com um aspecto de cenário, como o Pelourinho?

Maria Lucia – Temos uma visão equivocada de que restaurar é fazer o local retornar ao seu estado original, que muitas vezes nem sabemos qual era. Ou completar o que falta. É o caso do Pelourinho. As casas estavam arruinadas e as fachadas foram completadas, emulando a arquitetura original. Isso é um grande equívoco. Houve ainda a expulsão dos moradores. A única atividade de preservação que se fez ali foi uma intervenção física nos edifícios, o que favoreceu a instalação de redes de grifes, como joalherias. A região não tem uma vitalidade própria. Perdeu-se a originalidade do valor do patrimônio. Como se evita isso? É preciso manter a população e criar atividades para ela. Deveria haver políticas públicas para fixar os residentes e também promover um restauro especializado, não apenas recriar o que supostamente existia ali.

HV– Por que se pensa tanto em preservar unidades e não conjuntos? Por exemplo, tomba-se uma fábrica, mas não a vila operária.

Maria Lucia – Há um quê de ignorância, mas essa não é a única razão. É mais caro preservar um conjunto que uma só unidade. Prevalece a ideia de que se preserva o que é excepcional, um monumento. O que é representativo de um trabalho, de um cotidiano, isso sim deveria ser tombado. Somente dessa maneira saberemos como vivia determinada sociedade. É um conceito errado, meio de belas-artes, de que só vale a pena o que é lindo e feito de materiais nobres.

HV– A política de preservação do patrimônio histórico brasileiro já foi pior?
Maria Lucia – Já foi bem pior, no sentido de ser mais restrita. Há, atualmente, mais recursos canalizados para a área da preservação. Mas também um despreparo geral de arquitetos que não têm conhecimento especializado para a restauração de edifícios. Existe até um PAC do patrimônio. Acelerar a preservação não dá certo, porque é um processo cultural e porque a intervenção física precisa ser feita com muito cuidado e pesquisa. O PAC do patrimônio vai dar em Pelourinho. Desse ponto de vista, há mais recursos, mas com gente despreparada. O resultado pode ser mais destruição do que preservação.

HV– A senhora daria exemplos bem-sucedidos de preservação patrimonial no país?

Maria Lucia – Em São Paulo, a Pinacoteca. Era um edifício tombado, sofreu uma intervenção pesada em termos de projeto, mas que foi positiva. Ficou no limite correto entre respeitar o que havia e introduzir novos elementos. E trouxe um ganho de uso, com mais pessoas frequentando o espaço. Em Salvador, no Museu Rodin, ficou muito claro o que era antigo e moderno, pois estão justapostos. É muito mais sábio explicitar os contrastes.
Foto: Gabriela Farcetta

16 de dezembro de 2009

Com quantos escravos se constrói um país?

Por Luiz Felipe de Alencastro

No Atlântico português formou-se uma matriz espacial colonial específica. De um lado, no litoral da América do Sul, desenvolveram-se uma economia e uma sociedade fundadas no trabalho escravo africano. Do outro, principalmente em Angola, mas também no Golfo de Guiné, situavam-se as redes de reprodução dessa mão-de-obra escrava. As duas margens do Atlântico Sul se completavam em um só sistema de exploração colonial, cuja singularidade ainda marca profundamente o Brasil contemporâneo.

No início do século XVII, a circulação de homens e mercadorias entre Brasil e Angola já era considerável. Uma das mais claras demonstrações da ligação entre as duas colônias aparece no encadeamento das invasões holandesas. Na estratégia holandesa, os portos comerciais dos dois lados do Atlântico Sul eram alvos conjugados.

Quando tomaram a Bahia, em 1624-5, os holandeses promoveram também o bloqueio naval de Benguela e Luanda. A segunda campanha atingiu o alvo em 1630, com a captura de Olinda e Recife. Cinco anos depois, a Zona da Mata pernambucana tinha caído sob o controle de Maurício de Nassau. No primeiro relatório que envia a Amsterdã, ele enuncia as regras do jogo colonial no Atlântico Sul. Adverte que não era qualquer um que servia para ser colono na Nova Holanda: os candidatos deveriam dispor de capital “para mandar fazer a fábrica de que precisam, pois não podem ser trazidas da Holanda como são aqui necessárias, e para comprar alguns negros, sem os quais nada de proveitoso se pode fazer no Brasil”. E insiste: “Necessariamente deve haver escravos no Brasil (...) é muito preciso que todos os meios apropriados se empreguem no respectivo tráfico na Costa da África”.

Admitida a necessidade do tráfico negreiro, faltava ainda montar o circuito transatlântico de compra, transporte e venda dos africanos. Em 1637, Nassau envia uma frota do Recife para capturar São Jorge da Mina, entreposto português de comércio de ouro e de escravos no litoral africano (atual Gana). Sem saberem ainda negociar escravos na África, os holandeses levam dois intermediários para tratar com os traficantes africanos. Mas, ao constatar que a região não era suficiente para dar conta do fornecimento de escravos a Pernambuco, Nassau lança seus navios sobre o maior mercado atlântico de cativos: Angola.

Luanda, Benguela e São Tomé caem nas mãos dos holandeses entre agosto e novembro de 1641. A captura dos dois pólos da economia de plantações – as zonas produtoras escravistas americanas e as zonas africanas reprodutoras de escravos – mostrava-se indispensável para o implemento da atividade açucareira. Nassau é enfático: sem o trato negreiro e os portos angolanos, o Brasil holandês seria “inútil e sem frutos para a Compagnie”.

Pelos mesmos motivos, Portugal se preocupava com a situação na América. Chegou a tentar um acordo com os holandeses para que as duas partes tivessem acesso ao comércio de escravos. Não teve sucesso, e em meados de 1643, Telles da Silva, governador-geral do Brasil, prevenia el-rei: “Angola, senhor, está de todo perdida, e sem ela não tem Vossa Majestade o Brasil, porque desanimados os moradores de não terem escravos para os engenhos, os desfabricarão e virão a perder as alfândegas de Vossa Majestade os direitos que tinham em seus açúcares”. Ou seja: sem o trato de Luanda, a colônia americana estava condenada. Diferentemente do que tem sido dito e escrito em boa parte da historiografia brasileira, o tráfico de escravos no Atlântico Sul era predominantemente bilateral, e não triangular.

Tropas, navios e munição em quantidades suficientes para o socorro da África Central não poderiam sair de Portugal, que continuava em guerra de fronteira com a Espanha e guerra marítima com a Holanda. Coube então ao Rio de Janeiro e às capitanias adjacentes – principais interessadas no restabelecimento do tráfico negreiro – a tarefa de fornecer gente e petrechos, “pois todo o Brasil necessita de escravos para seu remédio”. Por força das circunstâncias que coibiam a ação da metrópole, abriu-se espaço para uma co-gestão lusitana e “brasílica” (nome genérico para os colonos do Brasil) no Atlântico Sul.

É Salvador Correia de Sá e Benevides (1602-1688) quem conduz, em maio de 1648, a frota luso-brasílica que reconquistará Angola. Composta de onze naus e quatro patachos, com quase dois mil homens, a expedição é financiada em 70% por fundos coletados junto aos negreiros e fazendeiros fluminenses. Dispondo de um estado-maior experimentado no Atlântico Sul e de “boa gente e infantaria exercitada nas fronteiras nas guerras de Portugal e na campanha de Pernambuco”, o corpo expedicionário desembarca e, após combates em Luanda, vence os holandeses em agosto de 1648.

Num memorial enviado à Corte, a Câmara de Luanda reconhece explicitamente que os sucessos da reconquista de Angola “mal se lograriam se os moradores daquela ilustre cidade [o Rio de Janeiro] se não fintaram [tributassem] com uma muito grande soma de dinheiro com que a armada se forneceu e obrou o fim desejado”. Cinco anos mais tarde, a Câmara do Rio de Janeiro reivindicou orgulhosamente o mérito da expedição: “Quem pode negar a esta cidade a glória da restauração de Angola?” A história da expulsão dos holandeses deixou evidente que o Brasil tinha continuidade fora das fronteiras americanas.

A partir daí, a presença brasílica afirma-se na África Central. Depois da independência, Angola continua sob influência brasileira, e desde 1823 fala-se da presença em Luanda, e sobretudo em Benguela, de um “partido brasileiro”, que joga as cartas dos interesses negreiros dos escravistas do Império do Brasil contra a política colonial portuguesa. Do lado brasileiro também havia um “partido angolano”, que almejava anexar Angola ao Brasil. Esta estratégia anexionista foi claramente enunciada por Nicolau Pereira de Campos Vergueiro (1778-1859), pai da pátria, senador, regente do Trono e ministro, na Constituinte de 1823.

Nenhuma região escravista das Américas teve na África um peso similar ao do Brasil. A intervenção brasileira em Angola, como também no Golfo de Guiné, sobretudo no antigo reino do Daomé, só declina após 1850, com o fim do tráfico negreiro no Atlântico Sul. Concretamente, o ciclo mais longo da economia brasileira é o ciclo negreiro que vai de 1550 a 1850. Todos os outros – do açúcar, do tabaco, do ouro e do café – são, na realidade, subciclos dependentes do ciclo negreiro. Neste sentido, pode-se dizer que a construção do Brasil se fez à custa da destruição de Angola.

A dependência do tráfico negreiro e da escravidão também deixou efeitos perversos entre nós. O fato de pilhar durante três séculos a mão-de-obra das aldeias africanas facilitou o extermínio das aldeias indígenas, tornadas desnecessárias, e gerou entre os senhores de engenho, os fazendeiros e o próprio governo, uma brutalidade e um descompromisso social e político que até hoje caracterizam as classes dominantes brasileiras.


Luiz Felipe de Alencastro é professor titular da cátedra de História do Brasil da Universidade de Paris IV Sorbonne e autor de O trato dos viventes – formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII (São Paulo: Companhia das Letras, 2000).

Saiba Mais - Bibliografia:

BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirti (orgs). História da expansão portuguesa. vol 1. Lisboa: Círculo dos leitores, 1998.

BOXER, Charles Ralph. O império colonial português (1415-1825). São Paulo: Companhia das Letras, 2002

THORNTON, John, A África e os Africanos na formação do mundo Atlântico,1400-1800 . Rio de Janeiro, editora Campus, 2004.

Crônica: Um domingo de concurso!

Por Willian Luiz da Conceição

Num desses belos domingos de sol, eu poderia ir à praia com a namorada, sair para tomar uma cerveja no bar da comunidade e ouvir um samba de raiz. Samba no estilo dos músicos da década de 1940, como Cartola e Noel Rosa, ou ainda de Luiz Melodia e Jorge Aragão... ai, que vontade!, mas me vejo “obrigado” a prestar um concurso público.

Que concurso? É, aquele adiado não sei quantas vezes e que lembramos sempre em cima da hora. Mas, como todo brasileiro, eu sonho em ser mais um funcionário público, para buscar estabilidade e melhor condição de vida, para poder dar um presentinho melhor no Natal para as crianças, já que o décimo terceiro não sobra pra isso.

Mas, nesse concurso, "dos milhões" que já prestei, aconteceu algo muito engraçado e inesquecível. Ao chegar na sala de prova, constatei que apenas eu e mais duas pessoas fariam a prova. Para nossa alegria, os outros candidatos devem ter preferido ir à praia ou ao samba e não concorrer as vagas.

Desesperada, uma das candidatas - uma senhora chicosa, diria da alta society se não fosse nos encontrarmos num concurso público para ganharmos R$ 900 - ficou louca ao responder todas as sessenta questões em uma hora e saber que não poderia sair da sala até que os dois outros candidatos tivessem terminado. Esbravejou, chamou os responsáveis e alertou que iria à Brasília falar com o presidente Lula porque aquilo era "inadmissível".

Após um leve banho de água fria e algumas ameaças, a mulher sentou e esperou. Obviamente que me comendo com os olhos e com a boca, já que fui o último dos três a terminar a prova. Ao sair da sala ouço ela ainda retrucar ao fiscal: "Olha, diga aos responsáveis de verdade por este concurso que isso é o 'fim da picada'".

Espero que um dos três seja aprovado!



Willian Luiz da Conceição é Acadêmico de História

ligaspartakus@gmail.com

15 de dezembro de 2009

Chico de Oliveira: ‘não há nada importante em disputa para 2010, apenas o poder’

Por Gabriel Brito – Redação do 'Correio da Cidadania'

Com a proximidade de mais um final de ano marcado por turbulências e escândalos que seguem a desmoralizar a política diante dos cidadãos, o país se prepara para adentrar mais um ano eleitoral. Com vistas a tratar dos cenários que devem se apresentar em 2010, o Correio da Cidadania conversou com o sociólogo Francisco de Oliveira, professor aposentado da USP.

Em seu entendimento, não veremos nada mais que um jogo de cartas já marcadas, no qual a programática estará descansando em um costado, dando lugar a meras disputas pelo poder, entre correntes que pouco ou nada se diferenciam. É inclusive esse cenário monolítico que conduz o debate para o lado rasteiro de baixarias e escândalos sempre frescos para o público.

Em meio a ideários que se repetem entre correntes outrora antagônicas, Chico de Oliveira ressalva apenas alguns avanços na assistência social (via que não lhe agrada de todo) e numa nova diplomacia nacional. No entanto, alerta que a oposição de direita ainda não se conscientizou de que, deixando desavenças e vaidades internas de lado, pode triunfar.

No que se refere ao que realmente se poderia sentir como novas ondas no mar, o sociólogo pernambucano desestima o fator Marina, sem fôlego para ir longe a seu ver. Por fim, critica duramente a possibilidade de não ser formada uma frente de esquerda similar à de 2006, classificando de "oportunismo e miopia política" uma aliança do PSOL com Marina.

Correio da Cidadania: Como analisa o quadro político brasileiro com 2009 chegando ao final e na perspectiva de um ano eleitoral pela frente?

Chico de Oliveira: Vejo de forma bastante simples na verdade. O quadro já está desenhado, não vai mudar, salvo se o ‘vampiro medroso’ de fato não concorrer, o que não é de se esperar. É uma disputa eleitoral PT-SPDB. Mas só eleitoral, não haverá nada em jogo.

Coisas decisivas, o ponto de vista da economia e da sociedade, não estão nem um pouco em jogo. É por isso que a política tem ficado nessas firulas, ataques, artigo de César Benjamin... Porque realmente não tem nada importante em disputa, apenas o poder, este sempre importante.

CC: O que a oposição de direita deve vir a fazer para tentar virar um jogo que se apresenta desfavorável a eles? Acredita que os escândalos e baixarias serão a estratégia explorada?

CO: É essa a alternativa, pois ela não tem programa alternativo. O paradoxo é que o governo do PT realizou e radicalizou o programa tucano. Salvo algumas perfumarias na área social e na política diplomática externa, muito mais arejada, não tem muita diferença.

Dessa forma, os tucanos não podem atacar a própria criatura, restando a baixaria. Mas está muito difícil, porque o senador Azeredo teve sua denúncia aceita pelo STF e agora Arrudão jogou a pá de cal. Mas o embate vai se desenrolar por esse caminho mesmo, já que no mais eles estão todos de acordo.

CC: Como se encaminha o governo Lula para as disputas de 2010? Acredita que suas bases de sustentação se manterão firmes?

CO: Não, isso ainda não está garantido. Não existe na experiência da história política brasileira nenhuma transferência de votos desse porte. É verdade que a redemocratização ainda é curta, apenas 20 anos, mas, numa experiência anterior, Juscelino, no auge de sua popularidade, não conseguiu eleger seu sucessor.

Não há nada garantido, Dilma não pode ter a certeza da transferência de votos de Lula, ainda que se use a máquina do Estado o quanto puder. Principalmente se os tucanos acordarem e se conscientizarem de que, marchando desunidos como quinta coluna do Aécio, serão derrotados; marchando unidos, têm uma chance alta de derrotar o Lula.

CC: Alta?

CO: Alta, pois os colégios eleitorais de São Paulo e Minas Gerais engolem o resto do Brasil.

CC: No fundo, podemos considerar que dá na mesma PT ou PSDB no governo, ou poderia haver uma diferença, mesmo que sutil?

CO: É difícil responder a essa pergunta, porque para os pobres evidentemente faz diferença o Bolsa Família, embora eu não goste do programa. Mas não posso negar que quem tem fome precisa comer. E também tem uma política externa através da diplomacia que é importante para outros países da região, como Venezuela, Bolívia, Equador, que têm tentado vias democráticas muito particulares. Para eles, o Brasil é uma garantia, seria importante manter e até ampliá-las.

Há alguma diferença; no entanto, no marco mais geral, ela é menor.

CC: Como enxerga a possibilidade da candidatura Marina? Servirá para arejar ou para distrair, sem incomodar o viciado jogo institucional?

CO: Eu acho que ela não vai ter essa votação toda. Quando chegar a reta final e os ânimos estiverem exacerbados, a candidatura da Marina vai murchar, porque os eleitores sabem que ela não é a alternativa. Não tem força para se colocar como tal. Esse discurso verde não pega muito. Ela é muito simpática e ecologista, mas isso não faz um presidente.

Tenho a impressão de que, quando chegar a reta final, ela perderá espaço.

CC: Algum partido de esquerda pode ser alternativa no debate?

CO: No debate sim, mas como alternativa real não há nenhum partido de esquerda. Nem PSOL, nem PCB, nem PSTU... Minha própria posição é de que esses três partidos de esquerda deveriam formar uma frente e reproduzi-la, a fim fazer uma crítica e reapresentar o programa do socialismo à cidadania brasileira.

Trata-se de reapresentar para fazer uma crítica rigorosa, aproveitando o momento eleitoral para isso, mas sem nenhuma chance real de chegar ao governo. Aliás, é bom que Deus nos proteja, porque, se chega a governar um país como esse sem bases políticas reais, não demora um mês no poder.

CC: E a polêmica interna ao PSOL acerca de se lançar candidatura própria ou se aliar a Marina, como enxerga?

CO: Creio ser oportunismo do ponto de vista de quem não quer ter candidatura própria. Em primeiro, porque pensam que a Marina terá um alto desempenho, a exemplo da Heloisa Helena em 2006. Não vai. A impressão que tenho é de que a Marina vai murchar e a Heloisa não vai trocar uma cadeira certa no Senado pela incerteza. Vejo isso, portanto, como oportunismo e falta de visão estratégica.

Em segundo lugar, porque apresentar uma candidatura própria não tira os votos que eleitores do PSOL vão direcionar para eleger deputados com os quais eles já contam. Acho isso uma aventura irresponsável e miopia política.


Gabriel Brito é jornalista.

Fonte: http://www.correiocidadania.com.br/content/view/4036/9/


14 de dezembro de 2009

Pobre samba meu

Por Felipe Trotta

Durante a primeira metade do século XX, o samba se tornou o principal gênero do mercado de música popular brasileira. Na voz de cantores de grande apelo popular, como, entre outros, Chico Alves, Nelson Gonçalves e Orlando Silva, o “cantor das multidões”, que pelas ondas do rádio alcançavam públicos do Brasil inteiro, pode-se dizer que o gênero se firmou como símbolo da unidade nacional e, gradativamente, ampliou seu prestígio no conjunto da sociedade e se consagrou no mercado. Apesar de eventuais preconceitos das elites intelectualizadas contra esse gênero saído dos morros cariocas, redutos dos pobres e excluídos, o mercado musical sempre conviveu muito bem com o imaginário impresso nas composições, fortemente apoiado em referências simbólicas – “o morro”, o “barracão”, a “favela” – originárias das rodas comunitárias onde eram produzidas. No final da década de 1950, contudo, esse convívio relativamente tranquilo começou a se alterar. Foi quando jovens da classe média, como Carlos Lyra, Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, passaram a se reunir em apartamentos da Zona Sul do Rio de Janeiro para trocar ideias e propostas musicais. Não precisavam de muito. Bastavam “um cantinho, um violão”, como na música de Tom Jobim. Dispensavam a voz “impostada” dos grandes intérpretes do período e o aparato cênico que a Rádio Nacional e o cinema montavam para apresentar os novos lançamentos da MPB.

O fato é que o surgimento da bossa nova inaugurou uma nova fase no mercado de música. Para seus teóricos, a bossa nova se caracterizava pela busca de novos elementos musicais capazes de dar ao samba um caráter “moderno”, em sintonia com o desenvolvimentismo do momento político-cultural do governo de Juscelino Kubitschek. O Brasil vivenciava uma atmosfera de otimismo e de crença no futuro, e o novo gênero seria uma expressão legítima de tais sentimentos. Em vez dos antigos temas da música brasileira, falava-se agora do barquinho, do violão, do sol, do sul, do mar e do amor. Mas e o samba? Que lugar estaria reservado a ele nessa nova conjuntura?

“Tradição” e “modernização” são noções que demarcam formas de relação com o tempo. A primeira estabelece uma ligação entre o presente e o passado, valorizando aspectos e fatos em detrimento de outros. Já a ideia de “modernidade” se volta para o presente, renegando o passado a um plano inferior, representado como algo sem importância, que “já passou”. Samba e bossa nova são duas categorias do mercado de música que, como veremos, se identificam respectivamente com as ideias de “tradição” e “modernidade”, e que, a partir delas, construíram formas e estratégias distintas de valorização estética.

Elaborado no seio de um conjunto social formado majoritariamente por ex-escravos e seus descendentes, o samba sempre esteve associado a um ambiente comunitário, ao convívio cotidiano de parentes, amigos e vizinhos, e também à ideia de festa, de sociabilidade e de lazer. Esse ambiente era representado no repertório principalmente através de uma série de símbolos que expressavam laços afetivos, servindo como elo entre as pessoas e promovendo coesão social nessa parcela da população. O “morro”, a “favela”, o “bairro” e a “escola de samba”, entre outros, frequentam espaços de destaque no imaginário do repertório do samba, formando um universo rico de auto-referências musicais e afetivas.

Por outro lado, a identificação com símbolos e práticas culturais desses grupos de baixa renda formados em sua maioria por negros e mulatos produziu, externamente, uma reação preconceituosa contra o gênero, que passou a ser atacado, segundo Adalberto Paranhos, como “coisa de negros e vadios”. Perseguido pela polícia e associado a vários tipos de delinquência no início, o samba aos poucos foi conquistando espaços no disco, no rádio e no mercado de shows.

A modernidade do estilo da bossa nova colaborou para estabelecer uma distinção no consumo musical em sintonia com a situação econômico-social dos diferentes públicos a quem se dirigia: uma música destinada ao consumo das elites intelectualizadas, e a outra, chamada de “tradicional”, que incluía o samba, destinada às “camadas mais baixas”. Musicalmente, os elementos da bossa nova sedimentaram essa distinção, aproximando a prática desse grupo de músicos e artistas dos critérios de valoração da música erudita.

O padrão de qualidade da música ocidental deriva da obra de compositores como Bach, Mozart, Beethoven e contemporâneos, a partir das quais se elaborou uma teoria musical ensinada em conservatórios e escolas de música no mundo todo. Nesse sentido, a bossa nova adquiriu grande prestígio estético, tendo contribuído certamente para isso a participação no movimento de Tom Jobim, músico de formação erudita, e de Vinicius de Moraes, poeta benquisto no meio intelectual que aderira a formas populares de expressão.

A bossa nova utilizou estruturas musicais de maior complexidade e, ao mesmo tempo, eliminou a polirritmia da percussão do samba, proposta sintetizada na batida de violão de João Gilberto, intérprete de Chega de saudade, de Tom e Vinicius, composição de 1956 que é considerada um marco do movimento. Soma-se a isso a interpretação vocal intimista do cantor, que se distanciava do canto popular impostado, amplamente utilizado pelos antigos intérpretes de samba das décadas de 1930-40. A bossa nova representava uma modernidade elegante, que rapidamente foi reconhecida como de alta qualidade.

O samba, por sua vez, estava cada vez mais estreitamente associado com o imaginário das rodas e do “fundo de quintal”. Essa ênfase aparecia na valorização de sua sonoridade característica (cavaquinho, pandeiro, cuíca, surdo e violão) e em referências a um passado glorioso do gênero, às escolas, e a espaços legitimados do seu imaginário, como as “esquinas, os botequins e os terreiros” do samba de Nelson Sargento. O samba iria buscar então um tipo de valoração mercadológica fortemente identificado com a “tradição”. Com isso, passou a ocupar uma zona de menor prestígio estético nesse mercado, sendo caracterizado como uma prática dotada de menor grau de sofisticação, “parada” no passado e por isso menos relevante para a história da música popular brasileira.

A mudança no patamar hierárquico da categoria samba acentuou diversos preconceitos relacionados à origem do gênero, que perpassam sua trajetória até os dias de hoje. Além do preconceito racial e social, o gênero continua sendo visto como uma prática cultural de menor valor artístico e estético, uma vez que seus elementos estruturais não correspondem aos critérios de qualidade cunhados pela bossa nova. A estratégia de legitimação utilizada por sambistas e admiradores do gênero colabora indiretamente para a manutenção dessa posição, ao se basear na valorização do samba a partir de sua vivência comunitária nas rodas, subúrbios e morros, associando-a com recorrência à “tradição”.

Um episódio que ilustra muito bem essa distinção valorativa do samba no mercado e no imaginário brasileiro ocorreu no réveillon de 1996, no Rio de Janeiro, quando seis artistas de prestígio no mercado fizeram um show em homenagem a Tom Jobim, falecido dois anos antes. Por essa apresentação, o sambista Paulinho da Viola recebeu um cachê três vezes menor que o dos demais artistas. Em meio a muitas brigas, acusações e xingamentos, ficou claro o desprestígio de um artista de samba, se comparado a outros identificados com uma categoria de mercado mais conceituada e reconhecida como de alta qualidade. Segundo Eduardo Coutinho, o episódio revelou uma desvalorização da “tradição”, que desde meados do século XX havia se tornado um critério de valoração menos reconhecido do que a “modernidade”.

Como movimento musical, a bossa nova durou pouco tempo. No entanto, a noção de modernidade aliada à qualidade se revelou um critério de valoração perene na música nacional. A cantora Nara Leão, musa do movimento, incorporaria ao seu repertório compositores “do morro”, como Zé Kéti e Nelson Cavaquinho, e do Nordeste, como João do Vale, que reapareciam em público assim numa roupagem mais ao gosto da classe média e finalmente começavam a vender discos. Ao mesmo tempo, o golpe civil-militar de 1964 ensejaria músicas politicamente “engajadas”, como as de Chico Buarque de Holanda e Edu Lobo, compositores formados no contexto bossa-novista, que também tentam resgatar, a partir de uma perspectiva “moderna”, as tradições populares da música brasileira.

No final da década de 1960, o tropicalismo, movimento fundado, entre outros, pelos baianos Gilberto Gil e Caetano Veloso, iria acrescentar um novo aspecto à modernidade, incorporando elementos da canção de massa internacional. Para seus protagonistas, a estética musical do Brasil não podia se resumir a uma música “engajada” ou a uma modernidade estética “alienada”, e propunham uma “retomada da linha evolutiva”, que nesse caso, representava a possibilidade de inclusão de elementos estéticos importados de músicas estrangeiras. Nesse sentido, a modernidade se aliou também à mistura, ao mercado e à quantidade.

Entre a quantidade e a qualidade moderna, nasceria uma nova categoria de mercado identificada pela sigla MPB. Nessa estética, samba, baião, rock, frevo e balada são apenas ritmos disponíveis para elaboração da criação individual de um artista muito valorizado esteticamente. No mesmo período, a indústria fonográfica fixou no LP a forma principal de produção de discos, que substituía os antigos compactos. O LP aumentou ainda mais a importância do artista, pois o disco passou a ser representado não mais a partir de cada música isolada, mas pelo conjunto, unido esteticamente em torno da mítica do “artista”. Mais uma vez, o samba, com seu caráter comunitário e coletivo, se via diminuído em face do elevado prestígio individualizado da liberdade estilística dos artistas da MPB. O episódio do réveillon de 1996 é um exemplo contundente desse rebaixamento hierárquico.

Desde a década de 1960, o gênero samba vive disputando mercado com uma ampla gama de músicas “modernas”. Na zona de prestígio, a “modernidade” da bossa nova transborda para diversas estéticas que circulam pela sociedade através da MPB, sempre num patamar hierárquico mais vantajoso que o do samba. Na área comercial, o rock, o pop, o reggae e várias outras estéticas internacionais “modernas” que por aqui aportam encontram no samba uma antítese nacional com a qual disputam território midiático e parte do público. Avesso a essa modernidade (tanto do lado da quantidade quanto no da qualidade), o samba se abraçou à sua “tradição” e andou peitando brigas e mais brigas: contra o rock, contra a MPB, contra o pop e, genericamente, contra o “mercado”. Assim, desenvolveu uma relação conflituosa com as instâncias desse mercado e também com representantes de outras práticas musicais.

Somente no fim da década de 1990 é que, ainda sem avançar muito no patamar hierárquico, o samba foi capaz de equilibrar a disputa com os critérios de modernidade, ocupando esferas significativas do mercado através de uma inédita diversidade estética no interior do próprio gênero. Aí as disputas migraram para dentro dele, numa acirrada discussão sobre os critérios de definição do gênero representada nos rótulos “samba de raiz” e “pagode romântico”. Tais transformações são reveladoras da dinâmica cultural da nossa música e da importância de um gênero que continua a levar alegria a “milhões de corações dos brasileiros”.


Felipe Trotta é mestre em musicologia pela Uni-Rio, doutorando em comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de “Dinheiro e solidão no Pecado Capital de Paulinho da Viola" In: Ao encontro da Palavra Cantada. (7Letras, 2001). É também músico, violonista e arranjador.

13 de dezembro de 2009

Por que defender Cesare Battisti?

Por Hernandez Vivan Eichenberger


Cesare Battisti está na mira do Judiciário, dos principais jornais e do governo italiano e suas representações no Brasil. Há mais de dois anos, quando foi preso no Rio de Janeiro, Cesare Battisti é o alvo de uma intensa campanha difamatória, que o usa de pretexto para atingir alvos mais “perigosos” que o italiano.

Cesare Battisti, na década de 70, integrou na Itália o grupo armado Proletários Armados pelo Comunismo, cujo fim era promover uma revolução socialista. A Itália passava por um fechamento político que reproduz em alguma medida suas características atuais, com o político de tendência fascista-espalhafatosa Silvio Berlusconi. O fenômeno de grupos armados sequer foi privilégio da Itália, mas também estiveram presentes na Alemanha, o que indica que as tentativas de libertação seguiam propostas semelhantes, em razão de uma falta de alternativas políticas.

Concorde-se ou não com a saída escolhida por Battisti frente a uma situação de profunda violência e autoritarismo, o fato é que os assassinatos pelos quais Battisti já sofreu condenação à prisão perpétua são muito questionáveis. Além do fato de que Battisti foi condenado sem provas, mas apenas por testemunhos – através do sistema de delação premiada, no qual antigos guerrilheiros, após tortura física e psicológica, recebiam a chance de saírem livres ao incriminarem seus antigos companheiros –, dois dos supostos assassinatos cometidos pelo italiano ocorreram no mesmo dia, em horários próximos, porém em cidades mais de 300 km distantes uma da outra.

Após o ministro Tarso Genro conceder o status de refugiado político a Battisti, o Supremo Tribunal Federal – cujo presidente é Gilmar Mendes, o mesmo que soltou o banqueiro-bandido Daniel Dantas duas vezes consecutivas – iniciou uma campanha, acompanhado de boa parte da mídia brasileira, a fim de tentar criminalizar Battisti. Além dessa campanha contrariar a tradição brasileira de oferecer asilo a notórios refugiados políticos, como é o caso de Battisti, o fim último dela visa a criminalização de todos aqueles que buscam outras saídas políticas, pondo em xeque o direito à expressão política.

Essa campanha está afinada com a direção geral de criminalizar os movimentos sociais e a pobreza no Brasil. Exatamente os mesmos que conduzem a campanha contra Battisti buscam criminalizar o Movimento Sem-Terra (MST), seja tentando dissolvê-lo no Rio Grande do Sul, seja tentando criar uma CPI contra o Movimento. Essa ofensiva busca criar o consenso necessário para processos judiciais, de fundo político, em âmbito local. Recentemente, três lutadores contra o aumento da tarifa de ônibus em Joinville sofreram tentativa de processo (com fundo político, mas que acabou não prosseguindo por falta total de provas) ou então os antigos dirigentes da CIPLA, quando controlada pelos trabalhadores, que também sofreram processos por sua atuação política tentando dar um novo rumo à empresa. Ou, ainda, com os moradores da ocupação do Juquiá, que de início também foram criminalizados pelo poder público.

O que não permite que esses processos judiciais de fundo político prossigam é a luta política travada pelos movimentos sociais, demonstrando a justeza de suas reivindicações e a maneira como as classes dominantes tentam criminalizá-los. Por isso a luta contra a extradição de Battisti é a mesma luta para impedir que os “de cima” continuem a passar por sobre os “de baixo”.

Em 1936 o governo de Getúlio Vargas extraditou Olga Benário Prestes para a Alemanha nazista. Olga morreu em uma câmara de gás. Hoje, sua filha Anita manifesta total solidariedade a Cesare, por saber a semelhança entre Olga e ele. Martin Niemöller, pastor protestante alemão, ativista contra o nazismo, relatou que não protestou quando o regime alemão prendeu comunistas, social-democratas, sindicalistas e judeus, pois Martin não pertencia a nenhum desses grupos. Mas foi capaz de reconhecer seu erro e dizer: “Quando eles me levaram, não havia mais quem protestasse”. Hoje vivemos, guardadas as diferenças históricas, uma situação semelhante. Ontem foi Olga, hoje é Battisti, amanhã algum de nós.



Hernandez Vivan Eichenberger é estudante de Filosofia da Universidade Federal do Paraná, militante do Partido Socialismo e Liberdade e membro do Comitê de Apoio aos Movimentos Sociais (Joinville/SC)

jarivaway@gmail.com

12 de dezembro de 2009

Bahia de todas as Áfricas

por João José Reis

Foi na Bahia do século XIX que ficou estabelecido o modelo básico adotado pelo candomblé que conhecemos hoje. Segundo a tradição, o Ilê Iya Nassô – a Casa de Mãe Nassô, popularmente conhecido como Candomblé do Engenho Velho ou Casa Branca – teria sido o primeiro a celebrar diferentes deuses simultaneamente sob o mesmo teto. Essa prática refletiria alianças entre grupos étnicos diferentes, contribuindo para a consolidação de novas identidades africanas em terras brasileiras.

Mas teria sido aquele terreiro o único com essas características no ambiente que o viu nascer? Pouco se sabe sobre a história das religiões afro-brasileiras no século XIX, inclusive sobre os indivíduos e grupos envolvidos. É a respeito de líderes, acólitos, devotos e clientes que vamos falar aqui. Informações sobre homens e mulheres participantes de formas diversas nesses rituais aparecem basicamente em dois tipos de fontes, os registros policiais e as notícias de jornal. Esses documentos eram produzidos por indivíduos que, em geral, não eram iniciados no candomblé, não tinham interesse nele como tema de pesquisa, curiosidade ou lazer, e que o estavam perseguindo e/ou condenando. Por isso, as informações que apresentam são quase sempre incompletas, distorcidas ou simplesmente equivocadas. Apesar disso, elas revelam muito das práticas e dos praticantes ligados aos cultos de origem africana ao longo do século XIX.

Durante esse período, na Bahia, a maior atividade do candomblé acontecia nos subúrbios de Salvador. Apesar disso, não foram poucas as denúncias de episódios acontecidos na cidade, sob as barbas da polícia, como insistia O Alabama, periódico “crítico e chistoso”, publicado entre 1864 e 1871. Dedicando-se a uma dura e sistemática campanha contra os candomblés baianos, o jornal publicava, com considerável frequência, histórias de pessoas envolvidas nesses rituais.

Os que podem ser considerados líderes do candomblé não eram apenas os indivíduos que presidiam os terreiros propriamente – ou seja, uma comunidade religiosa com seu grupo de iniciados, estrutura hierárquica e organizacional, calendário de festas, e assim por diante. Eram também os auxiliares mais próximos dos chefes de terreiros, incluindo, por exemplo, o líder dos tocadores de atabaques e o responsável pelo sacrifício votivos de animais. Com frequência, adivinhos e curandeiros atendiam em casa, sem participar da hierarquia dos terreiros de candomblé. Alguns atraíam centenas de consulentes, mesmo de fora da Bahia, até da África.

Nomes como o da sacerdotisa Nicácia, uma mulata que teria morrido em 14 de março de 1807, conforme foi registrado com precisão, no final do século XIX, em um Resumo chronologico e noticioso da Província da Bahia desde seu descobrimento em 1500. Segundo o autor da obra, o registro de Nicácia fora feito porque ela “tão falada foi por muito tempo, e da qual inda hoje se referem factos interessantes.” Infelizmente ele não relata esses “factos.” Moradora no Cabula, na época periferia rural e hoje bairro popular de Salvador, Nicácia demonstrou seu carisma alguns meses antes quando fora seguida por uma multidão até cidade, presa por ordem do governador da capitania da Bahia, o Conde da Ponte. Esse governador desencadeou uma vigorosa campanha repressiva contra candomblés e quilombos nos arredores da capital e no Recôncavo dos engenhos. Mas a perseguição aos cultos afros aconteceu durante quase todo o século XIX na Bahia.

Amaro, um liberto africano, foi uma vítima. Preso em novembro 1855 em incursão policial provocada por rumores de uma conspiração de escravos, era suspeito de ser “o grande sacerdote dos africanos” no distrito da Sé, populoso centro administrativo e religioso de Salvador. Com ele foi encontrada a maioria dos “vários objetos de [...] crenças” africanas confiscados em sua casa e outras da vizinhança. Alguns desses objetos foram assim descritos pelo subdelegado: “figuras, símbolos, sapos mortos e secos, chocalhos, pandeiros e algumas vestimentas”. Nessa mesma ocasião, na freguesia de Santana, foi preso o crioulo (preto nascido no Brasil) Francisco Antônio Rodrigues, o Vico Papai, segundo relatório policial porque “com embustes e superstições reúne em sua casa Africanos escravos para danças e [para] batuques com ofensa à moral pública”. Nem Amaro nem Vico Papai estavam liderando conspiração alguma, mas sim cultos da religião africana, o que não deixava de ser uma forma de rebeldia.

A maioria dos líderes identificados no período tinha nascido na África. É possível ir um pouco mais longe na tentativa de determinar a origem deles. Os escravos importados para a Bahia ao longo da primeira metade do século XIX vieram principalmente de povos do grupo linguístico gbe, localizados sobretudo na atual República de Benin, conhecidos como jeje na Bahia; ou eram falantes do iorubá, vindos do Sudoeste da atual Nigéria e chamados nagôs na Bahia. Maiores vítimas do tráfico transatlântico nos anos que antecederam sua proibição definitiva, em 1850, os nagôs alcançaram a marca de quase 80% dos escravos africanos em Salvador na década de 1860. Tradições religiosas nagôs e jejes predominaram no candomblé da Bahia oitocentista, mas no final do século os nagôs já tinham estabelecido sua hegemonia.

Embora candomblé seja um vocábulo de origem banta (família língüística dos escravos chamados no Brasil angolas, congos, benguelas, cabindas etc., trazidos principalmente de território da atual Angola), poucas são as evidências escritas sobre cultos especificamente bantos no século XIX baiano. Mas temos algumas expressões como candonga e milonga para designar feitiçaria, e calundu, para definir a prática religiosa africana em geral. Este último termo, que predominou até o final do século XVIII, foi mais tarde substituído por candomblé. É possível, porém, identificar uns poucos sacerdotes angolas entre os líderes desse universo religioso.

O papel de líder era também desempenhado por crioulos, pardos e até brancos. Tem-se notícia que, em julho de 1859, o português Domingos Miguel e sua amásia, a parda Maria Umbelina, foram presos numa casa à rua Coqueiros d’Água de Meninos, porque ali organizavam um candomblé com “danças e objetos de feitiçaria”, dele participando homens e mulheres pardos, crioulos e africanos, escravos, livres e libertos. Foram presas dezesseis pessoas. Que o português estivesse envolvido naquela experiência religiosa parece provável, mas é possível que a batuta ritual estivesse de fato nas mãos de sua amante parda ou de outra pessoa do grupo; talvez nas mãos de Felisarda Sulana, escrava e única africana presa com o grupo.

Nenhuma dúvida foi deixada pela polícia no caso da outra pessoa branca em nossa lista de líderes. Maria Couto foi abertamente acusada de ser “dona ou diretora” de um “grande candomblé” no Saboeiro, arredores de Salvador, que estivera ativo – batendo tambor e dançando para os deuses – por alguns dias em abril de 1873, até ser denunciado por vizinhos alarmados. Segundo o chefe de polícia, além de moradores locais bem conhecidos, estranhos armados e escravos fugidos frequentavam aquelas cerimônias, o que recomendava cuidado. O chefe de polícia ordenou ao subdelegado daquele distrito que prendesse Maria Couto e a levasse à sua presença – sinal de que ele achava pouco usual, talvez preocupante, ou apenas curioso, o fato de uma casa de candomblé ser liderada por uma mulher branca.

Alguns escravos faziam parte da liderança religiosa africana. O mais antigo documento conhecido no qual o termo candomblé aparece é relativo ao escravo angola Antônio, descrito por um capitão de milícias em 1807 como “presidente do terreiro dos candombléis”. Observe-se que aqui também aparece a palavra terreiro associada a candomblé, outra novidade. Um bem-sucedido sacerdote, adivinho e curandeiro, Antônio vivia longe de sua senhora, em terras localizadas em um engenho no rico município açucareiro de São Francisco do Conde, onde ele tinha estabelecido seu terreiro. Ali, o escravo era procurado por “número maior [de pessoas] de alguns Engenhos vizinhos nas vésperas de dias santos e Domingos”. Segundo um relatório policial, ele exigia, “apesar de ser moço, que lhe tomassem a benção, e lhe prestassem obediência, inda os mais velhos”. De início, Antônio conseguiu escapar às forças de milícia enviadas para capturá-lo, subornando um feitor do engenho, o que sugere que tinha acesso a algum capital obtido de sua prática religiosa. Seis escravos foram presos para informar onde Antônio se escondera. Ele foi preso porque o feitor subornado não cumpriria sua parte no trato.

Para ser chefe de terreiro, que implicava dedicação grande de tempo, um escravo tinha que ter relações especiais com seu senhor. Era o caso de Antônio, cuja senhora o deixava viver sobre si. Infelizmente não sabemos por que. É capaz que ela temesse seus poderes espirituais e se intimidava com seus conhecimentos de ervas venenosas. Mas a explicação pode ser mais simples: como muitos outros senhores, ela o autorizava a trabalhar sem impedimentos, desde que lhe pagasse parte da renda adquirida. Há casos do período colonial de senhores que chegaram a agenciar escravos curandeiros e por isso tiveram que dar satisfação à Inquisição.

Uma expressiva maioria dos líderes do candomblé havia nascido livre ou, principalmente, adquirido a alforria por compra ou doação. Os libertos formavam um setor importante da população africana e crioula na Bahia, sobretudo na capital, onde o sistema do ganho facilitava o acesso do escravo ao trabalho remunerado − como carregadores, vendedores, operários e artesãos −, que permitia a formação da poupança amiúde usada para a compra da alforria. Foram os libertos, sobretudo, os maiores responsáveis pela estruturação do candomblé baiano nesse período. Alguns deles haviam provavelmente obtido a liberdade com dinheiro ganho com práticas divinatórias, curas e outros trabalhos, ou essas práticas complementaram formas mais convencionais de ganhar a vida e a liberdade.

Negociantes, quitandeiros, ambulantes, vendedores eram algumas das ocupações de muitos dos adivinhos, curandeiros, pais e mães de terreiros. Mas não deviam ser poucos os sacerdotes africanos vivendo exclusivamente da religião, a se considerar os muitos clientes que, segundo as fontes, eles tinham. Esses clientes em geral deixavam, individualmente, pouca coisa na esteira do adivinho ou do curandeiro, mas de vez em quando pequenas fortunas podiam ser ali gastas. Como aconteceu com a africana liberta Maria Romana que, em 1856, acusou um certo Jorge, africano liberto como ela, de lhe tomar todo o dinheiro, jóias, além de um baú de roupas e até uma casa, como remuneração pelo tratamento de seu marido, o também africano liberto Pedro Theodoro da Silva, que segundo ela teria sido lentamente assassinado com “ervas venenosas” feitas por Jorge. Depois de sete meses tentando negociar, sem sucesso, uma reparação, Maria resolveu denunciar Jorge à polícia. Não se tem notícia do desfecho dessa história. Mas decerto, a reputação do acusado foi arruinada com o escândalo.

Era comum que esses líderes fossem despóticos, o que podia até elevar o seu prestígio, mas eles tinham de balancear essa reputação com outra mais positiva de generosidade, proteção e sobretudo eficiência ritual. Esta última é que ajudava as religiões africanas a recrutar, desde o período colonial, devotos e clientes de diversas camadas sociais.

Apesar de sua origem em grupos étnicos específicos da África, na Bahia o candomblé se caracterizou por um movimento crescente de mistura cultural, étnica, racial e social. Isso começou entre os próprios africanos de diferentes etnias. Documentos relativos ao fim do século XVIII e à primeira metade do XIX, ainda que escassos, sugerem a formação de identidades étnicas a partir dessa mistura. Em 1785, por exemplo, seis africanos foram presos em um calundu na vila de Cachoeira, no Recôncavo, onde danças, batuques e cantos eram frequentes. Eles foram identificados por uma testemunha africana no inquérito policial como dois “marris”, dois “jejes”, um “dagomé” e um “tapá” (termo iorubá que se usava na Bahia para designar os nupes, povo da África Ocidental).

Apesar de identidades diversas e mesmo da possível hostilidade que pudesse ter havido na África entre algumas dos grupos ali representados, eles eram falantes, exceto o tapá, de línguas gbe. Portanto, antes da criação do Ilê Iya Nassô, a religião africana já servia como instrumento de alianças interétnicas na Bahia, sobretudo no mesmo universo linguístico. Mas aqui ainda estamos exclusivamente entre africanos.

Em 1828, um juiz de paz prendeu mulheres, tanto africanas quanto crioulas, dançando para deuses africanos em Salvador, na freguesia de Brotas. Aquilo representava outro passo largo na formação do candomblé baiano: a incorporação ritual de negros nascidos do lado de cá do Atlântico. Considerando sua reação, o juiz que invadiu o terreiro se defrontara com algo novo. Em longos e coléricos relatórios ao presidente da província, ele argumentou que a mistura de crioulos e africanos para celebrar deuses d’além-mar era a ruptura de uma norma comportamental perigosa para a ordem pública; a seu ver, negras nascidas no Brasil deviam ser exclusivamente católicas.

Mas, de acordo com o juiz de paz, elas, ao contrário, “adoravam” deuses africanos sem muita preocupação em escondê-lo, embora fingissem ser devotas dos santos católicos. Era como se à mistura étnica de fato equivalesse a religiosa. O juiz não entendeu, mas testemunhava um fenômeno, novo para ele, já característico da religiosidade dos que viviam na Bahia: a circulação das pessoas através de diferentes sistemas religiosos, sem necessariamente misturá-los.

Na segunda metade do século XIX, abundam evidências sobre africanos, crioulos, mulatos e uns poucos brancos ritualmente misturados no candomblé. Com o correr dos anos, observa-se um processo de nacionalização das bases religiosas, mesmo se a liderança ainda continuava predominantemente africana.

Em 1862, tendo sabido que um grupo de crioulos havia construído terreiro em um bairro sob sua jurisdição, num local chamado Pojavá, um subdelegado escreveu que “neste distrito nunca os crioulos se deram a tal divertimento, foi a primeira vez que aqui o praticaram com admiração de [todos]”. Essa mesma autoridade vangloriou-se de haver acabado com todos os candomblés de africanos em sua jurisdição, que representavam – escreveu – “um modo de vida dos africanos que se não queriam empregar na lavoura”. O jornal Diário da Bahia fez um perfil detalhado dos presos no candomblé do Pojavá. Dos 26 homens, um era africano, três pardos e 22 crioulos. Quanto às mulheres, duas eram africanas libertas, quatro “pardas escuras” e 29 crioulas, mas nenhuma escrava; dentre os homens, apenas quatro crioulos eram escravos. Além da predominância parda e crioula, o candomblé era formado, sobretudo, por gente livre e liberta que eram, ao contrário do insinuado pelo subdelegado, trabalhadores. Havia um tipógrafo, um escultor, um sapateiro, um pintor, um marceneiro, um aparelhador e um lavrador; dois saveiristas e dois funileiros; três alfaiates e três carpinteiros; nove pedreiros. As ocupações das mulheres não foram listadas.

A composição do candomblé do Pojavá refletia os ventos de renovação característicos do processo de nacionalização desse universo cultural no século XIX, fosse seu dirigente africano ou não. Era um candomblé predominantemente formado por gente emancipada da escravidão e, a se considerar o perfil ocupacional dos homens, gente empregada em um setor mais especializado do mercado urbano de trabalho. Eram também jovens e nascidos no Brasil. Quanto à predominância crioula, o Pajová não era exceção. No ano seguinte, 1863, um subdelegado da freguesia da Vitória declarou que ali os “filhos da terra” já tinham substituído os africanos nos “batuques de tabaques”. Entretanto, os centros religiosos africanos continuariam a existir, pelo menos, até a virada do século. E o apelo à pureza africana se tornaria índice de prestígio dos candomblés, desde essa época.

Entre os clientes ocasionais e visitantes, encontra-se nos documentos todo e qualquer grupo, fosse de cunho racial, étnico, social ou ocupacional. Havia negros, brancos e mulatos, escravos e senhores, homens de negócio e vendedores de rua, professores e estudantes, prostitutas e madames, policiais e criminosos, artesãos, empregados públicos, padres católicos, políticos. Pessoas de todos os estratos sociais consultavam adivinhos e curandeiros e compareciam a funerais, ritos de iniciação e festas que celebravam divindades específicas ao longo do ano.

Típico neste caso era o que acontecia em 1862, no centro de Salvador, numa casa na ladeira de Santa Tereza, ao lado do convento com o mesmo nome onde eram educados seminaristas. Na casa, libertos e libertas africanas, assim como “pessoas de gravata e lavadas”, participavam de cerimônias presididas por Domingos Pereira Sodré, sacerdote nagô da cidade-porto de Onim (Lagos), que havia sido escravo num engenho do Recôncavo. Sodré era um afamado adivinho e “feiticeiro” que atendia a gente de toda sorte. Mas havia muitos outros e outras. Entre a clientela de Anna Maria, mãe de terreiro angola denunciada por “O Alabama” em 1864, constava uma parda que queria curar o filho de feitiço, um português e uma crioula que procuravam tirar o diabo dos corpos dos respectivos amásios, um crioulo em busca de cura para seu afilhado e uma “moça”, provavelmente branca, Virgínia por acaso, que queria arrumar casamento.

Se for lícito dizer que o candomblé baiano dessa época se identificava com africanos e era encabeçado, sobretudo, por eles, é também correto dizer que essa religião aos poucos deixaria de ser uma instituição ou uma forma de espiritualidade apenas africana, nem era uma religião exclusiva de escravos.

A história do candomblé na Bahia do século XIX é, portanto, a história de sua mistura étnica, racial e, logo, social. Um processo que ocorreu em diversas frentes: a reunião de africanos de diferentes origens étnicas para, juntos, celebrarem seus diferentes deuses, a atração dos descendentes de africanos nascidos na Bahia e a difusão de todo tipo de serviço espiritual entre clientes de diversas origens étnicas, raciais e sociais. Obviamente isso não fez do candomblé parte da cultura dominante local, pois ele continuou a ser visto – talvez pela maior parte da população e decerto pela maioria da elite – como anticristão ou incivilizado e legitimamente sujeito à perseguição e à brutalidade policiais.

Durante todo o século XIX e por muitas décadas depois, o candomblé continuou a ser identificado como uma instituição africana. Devemos admitir que, embora essa religião tenha se difundido na sociedade, enquanto existiram africanos na Bahia, provavelmente existiram candomblés apenas de africanos, e mesmo entre estes alguns etnicamente restritos. Mas, ainda que os terreiros não tenham deixado de representar uma memória da identidade étnica – pois continuam até hoje a se definir, de acordo com sua “nação”, como nagô, ketu, jeje, angola –, tal identidade, em virtude da inclusão de tantos elementos estrangeiros, deixou de se basear na linhagem étnica para se basear na afiliação espiritual. Mesmo com a repressão policial e o menosprezo público, esse processo transcorria a todo vapor nas vésperas da abolição da escravidão, em 1888.


João José Reis é professor do departamento de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e autor de REBELIÂO ESCRAVA NO BRASIL: A HISTÒRIA DO LEVANTE DOS MALÊS EM 1835 (Companhia das Letras, 2003)