30 de abril de 2010

Alegoria de um desejo


Por Roberto Conduru

A visão da afro-descendência como problema, dominante na sociedade brasileira no final do século XIX, não deixou de se fazer presente nas artes visuais, em obras que continuaram a construir um lugar secundário, marginal, para os negros. O quadro emblemático a esse respeito é Redenção de Cã, de Modesto Brocos, de 1895.

O pintor com certeza se preocupou com a tradução visual de formas, proporções, cores, brilhos e texturas dos elementos figurados, de modo a retratar fidedignamente as condições efetivas de vida nos extratos mais baixos da população. Entretanto, para além de seu evidente realismo, a obra é alegórica. Sem descrever a imagem, o título é a chave de leitura da idéia que o pintor defende. Faz referência a Cã, o filho mais jovem de Noé e pai do servo Canaã, que seria a origem dos camitas e dos demais povos da raça negra, todos destinados à servidão, segundo visões largamente difundidas à época. Se o título alude à possibilidade de salvação dos negros, a imagem indica exatamente o caminho para a redenção dos afro-descendentes no Brasil.

Na tela, uma negra idosa, com as mãos abertas e o olhar direcionado ao alto, parece demandar ou agradecer a Deus pela cena que tem diante de si. O que ela pede ou agradece a Deus? A imagem se faz legível de vários modos. O primeiro e mais forte sinal é justo a atitude da senhora negra, de gratidão ou súplica religiosa pela continuidade da purificação racial em processo no seio de sua família, devido ao nascimento de uma criança de pele clara a partir do cruzamento de sua filha mulata com o genro branco. Gesto que é reforçado por elementos menos explícitos. Sentado no batente da porta, no chão, próximo de pedras e da terra, da Natureza, o homem parece ter se rebaixado ao se misturar com os negros, vinculando-se a uma mulata, a qual, em sentido inverso, teria escapado do suposto destino da raça negra, subido na hierarquia social, e, assim, aparece sentada em um banco, mais próxima dos padrões culturais da civilização européia. A composição da pintura auxilia decididamente na deflagração de seu sentido: nas laterais, estão dispostos simetricamente pólos étnicos em conjunção na sociedade brasileira – a mulher negra (África) e o homem branco (Ocidente) –; entre esses pólos, tanto o resultado desse processo social – os mulatos, a miscigenação – quanto a solução para o problema – o branqueamento racial.

No exato centro do quadro, na mão da criança, uma laranja redonda e luminosa é configurada como signo de perfeição em meio ao ambiente rústico, degradado, com suas paredes carcomidas e coisas gastas; na mão do membro mais novo da família, a fruta guarda as sementes de descendentes mais e mais alvos, simboliza a pureza desejada para as gerações futuras.

A cena é, portanto, uma alegoria do desejo de purificação racial por meio do progressivo branqueamento da população e, assim, de liberação dos estigmas vinculados às condições sociais dos negros. É importante observar que, ao figurar os anseios da elite brasileira na atitude da senhora negra, fazendo-a simbolizar simultaneamente África e Brasil, o pintor identificou o país e a elite ao segmento social que pretendiam tornar invisível. Contudo, mais do que essa ambigüidade, é preciso ressaltar o dirigismo da imagem, que pretendia incutir nos afro-descendentes a vergonha e o abandono de suas origens.

Como disse Rafael Cardoso, a tela é “uma ilustração didática de uma aspiração comum à sociedade brasileira da época – a terrível ideologia do branqueamento da população, imperativo que ainda vigora em alguns recônditos da mentalidade nacional.” Pintura que continua a ter herdeiras: imagens propagadas em mídias variadas que, em nome do ideal dominante, seguem incentivando sujeitos os mais diversos a recusarem suas peles, cabelos, corpos, etnias, culturas.


LEGENDA(S) DA(S) FOTO(S)

• Modesto Brocos. Redenção de Cã, 1895, óleo sobre tela, 199 x 166 cm. Acervo Museu Nacional de Belas Artes.

REFERÊNCIAS

– CARDOSO, Rafael. A Arte Brasileira em 25 Quadros (1790-1930). Rio de Janeiro: Record, 2008

Roberto Conduru é historiador da arte, professor no ProPEd e no PPGARTES na UERJ, pesquisador com bolsas Pró-ciência da UERJ, Jovem Cientista do Nosso Estado da FAPERJ e Produtividade do CNPq.

24 de abril de 2010

Sinhá Moça é parte da Casa Grande! E não da Senzala.


Por Willian Luiz da Conceição

Acredito que muitos dos leitores já tenham assistido, pelo menos parte de um capitulo da telenovela Sinhá Moça produzida pela Rede Globo.
A primeira versão da novela foi apresentada em 1986, escrita por Benedito Ruy Barbosa e contava nesta primeira versão em seu elenco com Lucélia Santos e Marcos Paulo.

A telenovela foi readaptada em 2006 com novo elenco formado por Débora Falabella e Danton Mello entre outros, agora em 2010 a novela está sendo reprisada em “Vale a Pena Ver de Novo”.

No enredo busca-se representar o contexto que vivia o país principalmente em 1887, um ano antes da abolição formal da escravidão no Brasil. A trama ocorre em uma cidade do interior de São Paulo chamada Araruna onde monarquistas e republicanos (abolicionistas) enfrentam-se entre aqueles que buscam conservar o trabalho forçado de negros e os que buscam abolir a escravidão.

Como todas as novelas de época, busca-se um certo contexto histórico da realidade brasileira (na maioria das vezes sem sucesso), este é carregado com muito romantismo para agradar os paladares de quem as assistem sem muito senso crítico.

Nesta novela pode se perceber algo que esteve muito presente nas ciências sociais e na literatura do século XX (como Gilberto Freyre), a velha idéia e maneiras que fortaleçam a construção no imaginário brasileiro de um país mestiço e de democracia racial.

O que pouco se vê nas novelas como Sinhá Moça é a ação e luta dos escravos para sua própria libertação, talvez por está ficar apagada as sombras das boas intenções de brancos advindos do escravismo.

A ação do sinhozinho branco e abolicionista nos últimos anos até a efetivação formal (e não real) em 1888 em meio à efervescência internacional de ver a ultima e sofrida abolição ser efetuada, fica acima na teledramaturgia de milhares de revoltas de negros que pipocavam em todo o território brasileiro. Sinhá Moça representa a visão da casa grande (senhores) acerca do processo de abolição.

Levantes como em 1756 e 1864 em Minas Gerais, a revolta dos Malês em 1835 na Bahia e os milhares de quilombos formados a partir de fugas e conflitos contra o escravismo, ficam abafados pela TV comercial brasileira, na tentativa de enganar a todos com o velho discurso de passividade dos negros com sua situação, negando-os como sujeitos históricos em meio a bondade de senhores brancos em um sistema já falido social e economicamente.
Sinhá Moça, como tantas outras novelas buscam apagar de nossa memória e história a luta de resistência dos escravos que ajudaram a construir este país. Ainda hoje, seus descendentes sofrem os reflexos de quase quatro séculos de dominação, isso também querem apagar.


Willian Luiz da Conceição é acadêmico de História e pesquisador da temática de afro-descendência. ligaspartakus@gmail.com