10 de junho de 2010

Polícia Federal despeja quilombolas de terras que tradicionalmente ocupam


Por Assessoria de Comunicação CPT Bahia

Na manhã do dia 26 de maio, a comunidade quilombola de Barra do Parateca, no município de Carinhanha, localizado à 900 km de Salvador na região Sudoeste da Bahia, sofreu a intervenção da Polícia Federal , que destruiu casas, roças de abóbora, feijão, milho, mandioca, batata, melancia e expulsou animais em área ocupada pela comunidade, com 250 famílias, há mais de cem anos.

A operação ocorreu por ordem do Juiz da Vara Federal de Guanambi, que deferiu liminar de reintegração de posse em favor de João Batista Pereira Pinto, Juiz Estadual do mesmo município.
Em nota pública, a Associação Agropastoril Quilombola de Barra do Parateca, a CPT Centro-Oeste da Bahia, a Associação dos Advogados dos Trabalhadores Rurais da Bahia, e o Movimento dos Trabalhadores Assentados, Acampados e Quilombolas - CETA denunciam esta decisão da Justiça Federal e a ação da Polícia Federal nas terras tradicionais do quilombo. Confira a seguir a nota na íntegra:

"Na manhã de ontem, a Comunidade Quilombola de Barra do Parateca, município de Carinhanha, Bahia, foi surpreendida por uma operação violenta da Polícia Federal. Dez 10 homens, fortemente armados, destruíram casas, roças de abóbora, feijão, milho, mandioca, batata, melancia e expulsaram animais em área ocupada pela comunidade, com 250 famílias, há mais de cem anos.

A operação ocorreu por ordem do Juiz da Vara Federal de Guanambi, que deferiu liminar de reintegração de posse em favor de João Batista Pereira Pinto, Juiz Estadual do mesmo município. O beneficiário da decisão nunca comprovou a posse da área em litígio, mas vem cercando terras tradicionalmente utilizadas por quilombolas e extrativistas da região do Médio São Francisco.
Essas terras integram a Reserva Legal do Projeto de Colonização de Serra do Ramalho, de propriedade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, e também fazem parte da área a ser titulada em nome da comunidade através do procedimento em curso na referida autarquia, por serem terras ocupadas por remanescentes de quilombos (art. 68 do ADCT da Constituição Federal).

O cumprimento desta decisão judicial aconteceu em plena greve dos servidores federais do Poder Judiciário, onde nenhum ato com implicações processuais poderia estar sendo realizado, por configurar claro cerceamento de defesa, haja vista a impossibilidade de reversão do ato pelos quilombolas e o INCRA.

No direito brasileiro a concessão de liminares em ações de reintegração de posse deve ser uma medida excepcional, de urgência, a ser conferida somente em favor de quem comprova ser posseiro e cumpridor da função social da posse e da propriedade, conforme a Constituição. Isto tem que ser muito bem justificado e comprovado, o que não vem sendo exigido pelos juízes quando as partes são fazendeiros poderosos.

Na Bahia, é recorrente a emissão de decisões judiciais que ignoram tais exigências da Constituição, liminares são concedidas de modo arbitrário explicitando posições ideológicas da magistratura cujas raízes são bem conhecidas em nossa história.

Resultado: ao invés de agir em prol da realização de direitos fundamentais, o Poder Judiciário, fiel a uma mentalidade patrimonialista, viola os direitos das populações camponesas que cumprem, efetivamente, a função social da terra.

Em pleno século XXI, quando a humanidade vê-se perplexa diante da fome, da ameaça de destruição do meio ambiente, da guerra, dos horrores do processo de colonização racista, o Poder Judiciário continua operando como uma máquina de construção da miséria. A opção pela destruição de alimentos e casas, realizando cotidianamente despejos forçados de multidões de posseiros, trabalhadores e comunidades negras rurais que resistem e lutam para tirar seus direitos do papel é irracional.

Salvador, 27 de maio de 2010

Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia – AATR-BA

Associação Agropastoril Quilombola de Barra do Parateca

Movimento dos Trabalhadores Assentados, Acampados e Quilombolas - CETA

Comissão Pastoral da Terra – CPT/Centro Oeste da Bahia"


Link: https://www.abpn.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=521%3Apolicia-federal-despeja-quilombolas-de-terras-que-tradicionalmente-ocupam&catid=1%3Anoticias&lang=pt

2 de junho de 2010

Nota pública da Frente de repúdio à ação da Polícia Militar de SC


Ao povo de Santa Catarina.

A Frente de Luta pelo Transporte Público vem por meio desta nota repudiar a ação da Policia Militar de Santa Catarina na noite de 21 de maio, que colocou em risco a vida dos cidadãos que manifestavam seu repúdio ao aumento da tarifa e os princípios constitucionais de respeito a integridade física e moral do indivíduo, de liberdade de imprensa e de livre manifestação. A ação da PM e seu efetivo especializado (PPT, BOPE) contou com a aplicação a revelia de choques elétricos nos cidadãos, e ainda com nítidas manobras violentas e em alta velocidade com suas viaturas contra o corpo da manifestação.

Consideramos ainda a detenção arbitrária dos dois manifestantes acusados de danificar o patrimônio público por causa de pichações no centro da capital é uma afronta à inteligência do povo catarinense. Primeiro detiveram dois

manifestantes e depois tiraram fotos aleatórias dos locais pichados, atribuindo arbitrariamente a responsabilidade aos detidos. Tal atitude não passa de uma tentativa de usar a intimidação para calar a boca da Frente, já que nossos objetivos são justos e legítimos e vão contra os interesses de uma pequena, mas poderosa elite da nossa cidade de Florianópolis, que controla privadamente o transporte coletivo a mais de 40 anos, e assim com sua força econômica compra a classe política e faz da PM/SC um instrumento político (e violento) de seus interesses. A Frente de Luta pelo Transporte Público também repudia a prisão do jornalista que trabalhava cobrindo a manifestação, demonstrando outra prática coerciva da polícia que é ameaçar, intimidar e nesse caso até prender, quem ousar filmar e registrar as barbaridades cometidas pelos policiais em “trabalho”.

As bravatas do comandante tenente-coronel Newton Ramlow (que outrora já se afirmou combatente contra os Movimentos Sociais da cidade) e de seus comandados, ao chamar os manifestantes de “vagabundos” e “filhos da puta” (sic), demonstra a incapacidade desses servidores públicos em cumprir com a função que lhe foi atribuída pela sociedade dentro do cumprimento das leis.

Chamamos a atenção que muitos desses xingamentos desferidos pelo coronel e por seus comandados contra mulheres e crianças ferem também a lei Maria da Penha e o Estatuto da Criança e do Adolescente e não condiz com critérios éticos estabelecidos por lei aos servidores públicos.

A Frente exige a abertura imediata de inquérito e processo administrativo, disciplinar e criminal contra os policiais e seus comandantes envolvidos na noite do dia 21 de maio de 2010, como uma forma de garantir o Estado Democrático de Direito.

Frente de Luta pelo Transporte Público.
Florianópolis. 24 de maio de 2010.

É hora de estudar a história da África

Por SÍLVIO MARCUS DE SOUZA CORREA*

Debate surgido de audiência no STF sobre sistema de cotas raciais põe em relevo os laços entre passado escravista e políticas afirmativas.

“Qu’on le veuille ou non, le passé ne peut en aucune façon me guider dans l’actualité.” Frantz Fanon


Causou polêmica a decisão do ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), quando decidiu convocar audiência pública para tratar da inconstitucionalidade ou não do sistema de “cotas raciais” vigente no país. Mais polêmicas foram as declarações do senador Demóstenes Torres (DEM-GO) em torno do assunto. O senador pretendeu “lavar as mãos” no lavabo da história. Sua retórica eximiu qualquer responsabilidade brasileira no tráfico negreiro, pois os africanos praticavam a escravidão na própria África, sentenciou o senador. Ainda fez uma apologia carnavalesca da miscigenação no Brasil. Enfim, se esforçou para minar alguns fundamentos históricos da política de “cotas raciais”, adotada em mais de 60 instituições de ensino superior em todo o país.

Nos últimos dias, alguns jornalistas, historiadores e sociólogos contribuíram para o debate na imprensa nacional. Mesmo que as cotas e outras políticas afirmativas suscitem controvérsias, ao menos, uma coisa é certa: urge estudar a história da África.

Se alguns senadores da República não tiveram a chance de estudar a recente historiografia e conheceram de través os clássicos, as novas gerações têm sobre eles uma grande vantagem. Após a Lei nº 10.639, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afrobrasileira nas escolas, a tendência é melhorar o nível de formação dos discentes e, por conseguinte, da nova geração de políticos.

Para se precaver da tendência revisionista ou de fazer tabula rasa da história afrobrasileira, especialmente no que tange à escravidão, o estudo da história da África é, no mínimo, indispensável. Nas palavras do embaixador Alberto Costa e Silva, “a história da África é importante para nós, brasileiros, porque ajuda a explicar-nos. Mas é importante também por seu valor próprio e porque nos faz melhor compreender o grande continente que fica em nossa fronteira leste e de onde proveio quase a metade de nossos antepassados. Não pode continuar o seu estudo afastado de nossos currículos, como se fosse matéria exótica”.

Cabe lembrar que esforços têm sido feito nesse sentido nas últimas décadas. Agostinho da Silva foi um dos idealizadores do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade da Bahia, instituição que formou vários especialistas como, por exemplo, Yeda Pessoa de Castro, Vivaldo Costa Lima e Paulo Fernando de Moraes Farias. Também foram criados o Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo e o Centro de Estudos Afroasiáticos da Universidade Cândido Mendes (RJ). Cada um desses renomados centros tem sua revista que, com regular periodicidade ao longo de décadas, divulga o trabalho de especialistas em História da África ou de História Afrobrasileira. Com a consolidação dos cursos em nível de pós-graduação em história no país, a produção historiográfica brasileira tem sido uma das mais promissoras, em termos quantitativos e qualitativos, quando o assunto é escravidão atlântica.

Traficantes de escravos como Francisco Félix de Sousa, Joaquim Pereira Marinho e Domingo José Martins não são mais nomes desconhecidos dos estudantes de história. Sabe-se hoje o quanto o Brasil teve uma posição de supina importância no comércio de escravos, como o demonstraram Luiz Felipe de Alencastro em Trato dos Viventes e Manolo Florentino em Costas Negras, obras que já nasceram clássicas. Além desses estudos, a nova historiografia está conseguindo tirar do anonimato trajetórias de escravos que não puderam eles mesmos escrever sua própria biografia, como Equiano, ex-escravo, abolicionista e um dos primeiros escritores negros de língua inglesa. Do historiador João José Reis, o livro recentemente publicado sobre a biografia do africano Domingos Sodré é um belo exemplo dessa nova tendência historiográfica.

Na mesma vaga, tem-se o livro de Randy Sparks sobre a trajetória de dois príncipes africanos em Calabar (na costa da Nigéria) que, de comerciantes de escravos, viraram escravos nas mãos dos ingleses em 1767. Cativos na Virgínia, eles conseguem finalmente fugir para Bristol, onde se convertem ao metodismo. Com a ajuda de abolicionistas ingleses, eles conquistam a liberdade e voltam para a África, onde acabam se envolvendo novamente com o comércio de escravos. The Two Princes of Calabar (Os Dois Príncipes de Calabar) foi publicado pela Editora da Universidade de Harvard em 2004 e ainda aguarda tradução para o português.

Se os relatos de traficantes como Theodor Canot ou William Snelgrave, de abolicionistas como o inglês William Wilberforce ou o africano Equiano e as histórias de vida como de Domingos Sodré ou Robin John nos trazem diferentes perspectivas sobre a escravatura, resta imponderável a experiência trágica de quem passou pelo crisol da escravidão.

Historiadores como John Thornton, Paul Lovejoy e Olivier Pétré-Grenouilleau têm mostrado diversos aspectos da escravidão africana. Não restam dúvidas sobre as dezenas de reinos africanos que participaram do comércio de escravos, das centenas de régulos e comerciantes nativos que viviam da escravidão africana, dos milhares de europeus envolvidos com a compra e venda pelos portos negreiros do Atlântico e de milhões de africanos escravizados e levados para as Américas. No Brasil, além de uma minoria branca proprietária de escravos, houve, sim, brasileiros traficantes, mulatos e mesmo negros senhores de escravos. Mas o que isso pode mudar diante do insofismável número de afrodescendentes vítimas da exclusão social?

O estudo da história não deve ser confundido com um tribunal. Isso não significa mare liberum para navegar opiniões levando apenas lastro. Nesse sentido, a historiografia deve balizar as discussões. Diante dos arrivistas e panfletários de plantão, a presença dos historiadores no debate sobre as cotas ou demais políticas afirmativas favorece o esclarecimento de certas articulações entre o passado e o presente.

Mas as cotas não servem para corrigir o passado. Ele é irreversível e, por conseguinte, incorrigível. As cotas servem para projetar um futuro diferente, isto é, sem as desigualdades “raciais” do passado e do presente. No seu livro A Escrita da História, Michel de Certeau nos ensina que o lugar que a história destina ao passado é igualmente um modo de dar lugar a um futuro.



* SÍLVIO MARCUS DE SOUZA CORREA é Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina, doutor em sociologia pela Westfälische-Wilhelms-Universität Münster, co-autor (com René Gertz) de “Historiografia Alemã Pós-muro” (Edunisc, 2007)

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Legenda da Foto: "Navio negreiro" de Johann Moritz Rugendas (1830)